Vivia cercado pela rotina.

De tempos em tempos, sem periodicidade certa, ia estrebuchando contra ela. Conseguia mesmo identificar nos arquivos primevos da sua memória momentos desses que poderiam ter sido tão aparentemente inócuos como passar a ir para a escola por um caminho diferente (algo que, pensando melhor, não tem nada de inócuo na idade de todas as inseguranças e curiosidades no mundo de um menino mimado) ou tão corriqueiros como mudar de penteado ou de modo de vestir. Sabia agora que o fizera, não para afirmar a personalidade ou para procurar identificar-se com alguma tribo mas, para cumprir uma outra eventual teoria que estudasse a batalha perene contra a rotina. Sem surpresa e com algum gozo, matutava neste instante que as teorias só se dão bem com fenómenos rotineiros.

Os anos passaram e hoje continuava a combater a rotina de forma não militante e não sistemática. Contentava-se com espasmos pouco exuberantes, apenas muito pontualmente cedia a pulsões românticas; devaneios pela estrada fora sem destino nenhum. Habitualmente preferia meter-se dentro de um livro, ou escrever no blogue, residência à qual alterava fundos, tipos de letra e nomes oficiais com bastante regularidade. Teria como arma fundamental na luta anti-rotina a cosmética, ou pelos menos, esta bastava-lhe na grande maioria dos acessos de angústia induzida pela rotina. Divertia-se. Rir contra rotina, atacando-a com ela própria!

A verdade é que era um ser pacífico, não suportaria viver sem rotina durante muito tempo. "Há poucos males absolutos e a rotina não é um deles", pensava quando imaginava os milhões de humanos anónimos supostamente ignorados pela História.

Contudo… Hoje pôs-se a matutar de novo na rotina, no seu excesso e, particularmente, na forma ironicamente rotineira, que escolhera para controlar aquela febre esporádica. Descobriu que se inspirara nos escapes das locomotivas que frequentara a caminho da Beira (Baixa) durante muitos anos, desde criança. Pelo meio de uma sucessão de pouca-terras ouvia-se de quando em quando um silvo gasoso, com marca singular, libertando-se de parte incerta.  Era este o seu programa anti-rotina: tinha como padroeiro um cavalo mecânico mas relinchante.

Aqui está ele agora, levantando um copo imaginário e brindando enquanto clama que relinchar é o seu remédio, isso e um ou outro coice acidental, “ e serei sempre assim, até ao ponto final”, promete numa tentativa de autoconvencimento.

Enquanto o néctar imaginário lhe escorre pela goela abaixo, remata: “Eis um simpático programa para que se possa dar o devido valor a um belo parágrafo”.

(em estéreo, em breve e com bonecos) 

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