Estamos no tempo dos textos longos., querido Partido Socialista. E no tempo dos silêncios fatais. É preciso usar a dor para fazer a catarse e preparar o futuro, afastar a depressão e a pulsão para a clausura acolhedora. É a hora de mudar mas, primeiro, será a hora para criar as condições para termos sequer hipótese de chegarmos a quem perdeu a confiança. Peguemos no espelho.

O PS precisa recuperar a confiança dos eleitores e o primeiro passo deve envolver um mea culpa cristalino e sincero. É assim nas relações entre pessoas quando metemos o pé na poça e queremos reatar uma relação. Na política, não será diferente.

A sinceridade do ato é decisiva também para que o próprio tenha capacidade de fundar bases mais sólidas e sustentáveis para uma nova etapa da relação. Para que tudo o que se venha a propor a seguir seja credível e bem mais resiliente perante as campanhas de desinformação que surgirão ou perante um assomo de desconfiança que regresse.

Lidar com as campanhas de desinformação permanentes – que não param com o fim das campanhas eleitorais –  será ainda outra etapa. Uma etapa que, já agora, dificilmente terá sucesso sem que o PS tenha capacidade de mudar a forma como faz política em continuidade e sem que tenha capacidade de desfazer as suas tantas tribos alinhadas com interesses demasiado umbiguistas. Uma desmontagem que não vejo possível sem que haja entrada de povo novo nas fileiras de militantes do PS, do mais simples ao mais iluminado. Algo que também não vejo como possível, já agora, sem uma transformação dos seus processos de organização interna, de participação democrática e influência dos militantes e simpatizantes em decisões fundamentais na atribuição de poder e nas escolha fundamentais. Mas adiante, o foco aqui e hoje é mesmo o mea culpa

 

O mea culpa

O PS não tem desculpas a pedir por ter consolidado e matizado de características muito mais condignas o processo de ajustamento orçamental do Estado na sequência da crise financeira internacional. As reversões dos governos PS, em particular do governo da geringonça, foram adequadas, justas, melhoraram as condições de vida de muitos portugueses e em nada comprometeram o ajustamento, pelo contrário mas…

O reverso da medalha de termos um processo que conduziu a sucessivas ultrapassagens das metas de redução do défice foi desvalorizado e as suas vantagens foram desaparecendo após termos reconquistado a confiança internacional.

Recuperámos a confiança, tivemos o Ronaldo das Finanças e… mantivemos-nos agarrados ao objetivo, ou melhor, à superação sucessiva dos objetivos autoimpostos, por mais meia década. Ora nessa meia década algumas das inevitáveis desvantagens do processo, associadas tanto à redução do investimento em materiais, equipamentos e atualização de processos nos bens e serviços públicos, como à perda de competitividade do Estado em termos de atração de quadros, transformaram-se em enormes problemas.

Falhar o tempo previsto para a mudança da correia de transmissão do motor não provoca o seu colapso imediato mas se a demora for suficientemente longa, o colapso catastrófico será inevitável. E o PS andou a poupar demasiado tempo em peças essenciais, destruído a capacidade de atuação do Estado bem para lá das vantagens que se obtinham no frente do défice. Criou condições ideias para, por exemplo, na saúde, Portugal deslizar ainda mais para o pior dos dois mundos: nem o público dava resposta direta, nem havia um modelo coerente de concessões, mas tudo se tornava/torna muito mais ineficiente e muito mais caro para o bolso das pessoas. Os oportunistas aproveitaram, mas as condições foram criadas.

Juntando essa meia década à anterior que tinha sido exatamente igual em termos de destruição de capacidade do Estado (com o garrote sobre o investimento público), à significativa perda do poder de compra de quem tinha o Estado como patrão e, em muitos casos, da degradação das condições de trabalho em vários serviços públicos (polícias, pessoal médico, escolar, bombeiros, aparelho de justiça), ajuda a explicar o aparente colapso do Estado em várias áreas.

Um colapso que estará também, por um lado, a ser exacerbado em termos propagandísticos pela nova força populista e desinformadora emergente e, por outro, parcialmente fundamentado por um inusitado acréscimo, quer da população presente num dado momento (turismo mais imigração), quer pela população residente (imigração).

Sim, os governos do PS arrepiaram caminho com os sinais mais dramáticos que foram surgindo, por exemplo, nas áreas da saúde e educação, eliminando muitas das restrições administrativas e de contratação que agravavam ainda mais a sangria de capacidade mas fê-lo demasiado tarde e com eficácia diluída, nomeadamente em função de terem ocorrido ao mesmo tempo que a procura por serviços de saúde e educação estava a subir mais rapidamente do que o antecipado aquando do desenho das políticas e ainda em simultâneo com um volume elevado de passagens à reforma em algumas das profissão chave destes setores. Faltou planeamento, antecipação e/ou poder dos ministérios sectoriais junto da área das Finanças para mudarem de rumo.

Recorde-se ainda que apesar de termos um saldo natural negativo, a verdade é que voltámos a ter mais alunos nas escolas em vários pontos do país e mais clientes para o SNS, alimentados pela resposta da força de trabalho internacional às necessidades de mão de obra em Portugal. Aí o PS fez o que se impunha agilizando a entrada de imigrantes mas te-lo-á feito, mais uma vez, sem acompanhar devidamente o impacto da política, sem que uma monitorização tivesse sinalizado necessidades de ajuste, sem que as condições de integração, acolhimento e regulação tivessem merecido a resposta tempestiva que se impunha. E fê-lo ainda no meio de uma situação crónica e caótica na gestão de fronteiras e afins, tudo temas da responsabilidade direta do governo, na gestão dos seus serviços, do SEF às polícias. A realidade ultrapassou, mais uma vez, as políticas do governo e este não conseguiu reagir a tempo.

Algo parecido sucedeu com as políticas de revalorização de carreiras. Também aí as políticas desenhadas pelo PS foram ultrapassadas por um dado novo que reduziu ou eliminou o impacto que era suposto garantir a valorização das carreiras ter em termos de melhoria do poder de compra de muitos funcionários do Estado: a inflação.

E o PS não soube adaptar-se a essa nova realidade reconfigurando a revalorização pois, mais uma vez, a prioridade foi sempre o reequilíbrio das contas públicas. Mas onde é que a inflação se impunha como ameaça imediata às contas públicas? Era inteiramente antecipável que a inflação se revelaria uma vaca leiteira para os cofres do Estado durante pelo menos os seus primeiros impactos e mais até (na escala e no tempo) em Portugal do que em muitos outros países parceiros. A atual estrutura de impostos portugesa, apesar de tanto frenesim em torno do IRS e do IRC, está muito centrada nos impostos indiretos, os impostos sobre o consumo, o IVA, o IMT, o IS, o IUC, o ISP; etc, etc, etc. E com o atual perfil de especialização da nossa economia, muito suportado pelo afluxo de consumidores, perdão, de turistas (e de investidores em imobiliário), essa inflação só poderia trazer um maná para as contas públicas, a menos que ocorresse um colapso económico global que, muito francamente, até pela natureza do processo inflacionista em causa, não se antecipava.

A inflação e o fulgor do mercado de trabalho, que tem batido recordes sucessivos de número de empregados nos últimos anos, fez o Estado dar um salto enorme rumo a um excedente e a uma redução que ninguém teria coragem de antecipar como possível na peso da dívida sobre o PIB e nos governos do PS isso foi motivo de sucessivos momentos de autoelogia e vã glória.

Mas a economia não perdoa a quem não domina ou resolve ignorar a sua intrincada teia de relações e os efeitos sobre o seu objeto último que são as pessoas.

Isto é também patente na área da habitação onde até 2019 os governos do PS eram acérrimos crentes no poder da concessão de crédito bonificado e dos benefícios fiscais para atuar sobre a economia. No caso da habitação, a aposta foi na fiscalidade, criando regimes mais favoráveis para o arrendamento de longa duração e limitando ao chamariz fiscal associado ao alojamento local. Isto ao mesmo tempo que era política oficial vender o máximo de ativos presentes no portfólio imobiliários do Estado (da Segurança Social à Estamo passando pelo imobiliário da Defesa) para ajudar no esforço de consolidação de contas públicas. Neste objetivo de venda, venda, venda, incluíam-se fogos para habitação ou imóveis que poderiam ser reconfigurados para encorpar o parque público de habitação cujo alargamento é incontestavelmente visto – hoje – como uma necessidade para uma larga maioria de forças políticas. “Lá fora”, na economia, os preços das casas já subiam, Lisboa e Porto já estavam a entrar no mercado imobiliário internacional à boleia do turismo, da descoberta do país e também dos regimes fiscais mais favoráveis para captar investimento de não residentes, entre outros. O imobiliário como ativo financeiro ressurgiu em força depois do COVID e até hoje o tema está por regular.

O PS, mais uma vez, a partir de 2020 começou a arrepiar caminho mas com fortes condicionamentos dentro do próprio governo em mudar de forma empenhada e com dimensão significativa as suas políticas. Mais uma vez, demasiado pouco, demasiado tarde, numa área onde, por definição, as políticas públicas demoram a surtir efeitos.

Justiça seja feita que a mudança protagonizada pelo PS foi recebida de forma absurda pela oposição, pelo Presidente da República e por uma certa elite, tendo existido um processo incomum de diabolização e de desinformação que ajudou a tolher a política do PS e a limitar os seus efeitos mais imediatos. Na batalha comunicacional, o PS foi derrotado e com isso também se cavou um passivo com consequências eleitorais. Pior do que isso, aprofundou-se um problema nacional que ainda está por resolver e onde o diagnóstico continua a não ser consensual provavelmente porque há demasiados interessados no status quo com demasiado poder entre quem hoje nos governa.

Finalmente, um mea culpa pela que não se fez ao nível da otimização do uso dos recursos públicos. Correndo o risco de ser injusto com quem esteve em bolsas de gestão da coisa pública que melhoraram nos governos do PS, a verdade é que o PS tem de ser o campeão da reforma de o Estado e não o foi. Tem de ser o líder entre pares quanto ao uso eficiente, eficaz e proveitoso de cada euro que o Estado recebe dos impostos. O PS tem de ser a força de transformação que defende que se confira aos gestores públicos as condições para uma gestão em termos equilibrados com o setor privado onde se defende a ação direta do Estado e onde estes gestores são responsabilizados mas também premiados pela autonomia que devem ter.

Tem de ser o móbil do progresso, guiado por uma inquietação permanente perante a busca de melhores formas de atingir os objetivos de políticas públicas com os recursos que temos e tem de ter a capacidade de ver, planear e mudar. O PS demasiadas vezes nos últimos 8 anos em que governou foi uma força política que se desinteressou de gerir o aparelho do Estado e de o transformar, de o ajustar às necessidades próprias de um bom governo.

De certa forma parece não ter assumido plenamente as suas funções e o poder que lhe foi conferido. Deixou até de encarar a governação como uma atividade de urgência permanente para se acomodar com pouco rasgo e com crescente distanciamento da sociedade e do acompanhamento multidimensional das suas políticas e omissões.

Precisamos de governos com um impulso próprio e não apenas como antenas europeias (onde o PS esteve melhor em vários momentos) e para isso é fundamental cativar competência fora dos quadros militantes e adquirir competência entre os que fazem da política carreira.

O PS não se modernizou e essa falta de capacidade de gestão refletida na sua organização interna, ficou demasiado patente em múltiplas áreas do próprio governo. O PS converteu-se num gestor da situação, talvez desgastado pela gestão de emergências (não esquecer o COVID onde o PS cumpriu o que se exigia com grande esforço e empenho). Mas a realidade é que hoje o PS não é visto como progressista, antes sim como um partido que cuida dos mais velhos e despreza o resto.

E agora?

Nem todos concordarão com os detalhes deste mea culpa, haverá uma ou outra imprecisão que o fragilizam, mas estou convencido que, no essencial, há aqui matéria de consenso fundamental para reconhecimento e ação humilde.

De certa forma é preciso começar de novo. Que se tenha a coragem e inteligência de aceitar que o mundo mudou muito face ao dia em que o PS foi fundado e que se é verdade que em muito temos de regressar às origens das quais nos desviámos, muito mais temos de mudar na forma como nos encaramos ao espelho e como querermos que nos vejam daqui em diante. Verdadeira transformação é preciso.

O PS não precisa de ir ouvir os portugueses, precisa de ter os portugueses no PS, lá dentro, a construí-lo. Esse será um passo que um bom mea culpa poderá facilitar. Haja coragem e sentido de oportunidade para o fazer. De certa forma todos, no PS, falhámos, e falharemos de novo de cairmos na tentação de mais uma vez não encararmos as más horas como transformadoras e cedermos à tentação de que o tempo tudo cura sem que nada mude, de facto.

O que aprendemos com os erros do passado?

Que eleitores queremos representar?

Que interesses queremos defender?

Que políticas queremos dinamizar?

Que realidades queremos transformar?

Que país queremos?

Que democracia interna queremos ter?

Que novas formas de fazer política vamos privilegiar?

Que venham os próximos capítulos.

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