“Jacob Ryten: O canadiano especialista em estatística volta a Portugal, onde viveu a infância, para avaliar o desempenho do INE, acompanhado pelo seu amigo Ivan Fellegi. Os dois fizeram do organismo estatístico do Canadá uma referência mundial” in Público
Este é um assunto que me interessa quanto baste e confesso sempre me interessou desde que percebi o que é uma estatística. Julgo que poderá haver por aí quem perceba a importância estratégica do que está em causa e se interesse também por este assunto.
O caso do INE poderá servir de exemplo (em “bom”, de preferência) a alguns institutos públicos ou mesmo empresas públicas e privadas. Há poucas instituições que empreguem quase 1000 trabalhadores em Portugal e menos ainda que tenham já quase 70 anos de história. Até por isso é sempre interessante observar com atenção potenciais estes casos de estudo. Implementar uma reforma, um rejuvenescimento é sempre complicado. Mas não me alongo mais pois a entrevista feita a Jocob Ryten que o Público (João Ramos de Almeida) apresentou no suplemento de Economia de segunda-feira passada é absolutamente imperdível e muito esclarecedora do diagnóstico típico que em larga medida se poderá ajustar a Portugal e ao INE. Esperemos que daqui a cerca de um ano seja dado o passo seguinte.
Em anexo publico a entrevista referida para memória futura.
Jacob Ryten
“Um Instituto de Estatística Não Pode Funcionar Sem a Imprensa”
Segunda-feira, 24 de Novembro de 2003
O canadiano especialista em estatística volta a Portugal, onde viveu a infância, para avaliar o desempenho do INE, acompanhado pelo seu amigo Ivan Fellegi. Os dois fizeram do organismo estatístico do Canadá uma referência mundial
João Ramos de Almeida
Fala português como um português. Mas os seus pais fugiram de uma antiga Rússia imperial agitada por uma guerra mundial, uma revolução, a guerra civil que se lhe seguiu e que se prolongou na guerra entre a Rússia e a Polónia em 1921. Em 1931, instalaram-se em Portugal, onde Jacob nasceu entre uma família com inúmeras nacionalidades. Frequentou um colégio britânico que lhe deixou a língua inglesa como “quase uma língua materna”. Acabou por ir para o Canadá por dois anos e ficou lá 27. Gostou do país, mas ainda mais das oportunidades do organismo estatístico canadiano, em parte porque lá encontrou Ivan Fellegi, um húngaro que com 21 anos se refugiou no Canadá após a revolução húngara de 1956. Tornaram-se amigos e os dois contribuíram para fazer do instituto canadiano a referência internacional do sector. De 1985 até 1997, Fellegi foi o presidente do instituto e Jacob Ryten o vice-presidente. Os dois virão a Portugal avaliar o desempenho do Instituto Nacional de Estatística (INE).
PÚBLICO – Na altura, como era o Instituto do Canadá?
JACOB RYTEN – Já tinha as características que tem hoje. Era grande, centralizado e tinha muita competência. Não tinha uma gestão excepcional, mais tradicional. Foi criado após a I Grande Guerra e, na altura, era sem dúvida o instituto mais progressivo. Mas, como todas as coisas que se fazem muito bem, têm a tendência a congelar no tempo. E em 1969, quando fui para o Instituto, tinha todos os indícios de um organismo que precisava de rejuvenescer.
Como se podia rejuvenescer?
Da maneira comum: substituindo pessoas que estavam no instituto há 35 anos ou mais, por pessoas que estavam há cinco anos ou menos, através de uma nova direcção. E esse é o problema. Por um lado queremos continuidade, por outro queremos inovação, e nunca chegamos a equilibrar os dois objectivos. Mas nesse caso era necessário.
Tivemos sérios problemas porque o Instituto atravessou um período crítico entre 1975 e 1980. Tão crítico que, em 1980, o Governo canadiano quase que estava decidido a transformar o Instituto num sistema estatístico muito mais parecido com o norte-americano. Em vez de ter um instituto centralizado, queria dividi-lo em áreas funcionais: teríamos as contas nacionais no ministério das Finanças, a industriais no ministério da indústria, as da Saúde no da Saúde…
Que lições desse processo podem ser seguidas?
Uma deve lhe interessar: o Instituto tinha péssimas relações com os jornalistas. Péssimas, não: inexistentes. E uma das primeiras medidas, tomada na primeira semana, foi convocar os membros da imprensa e dizer-lhes: “A partir de hoje tenho as portas abertas. Não especulem, não imaginem, não dêem crédito a rumores, se querem saber falem connosco abertamente.” É que um instituto de estatística não pode funcionar sem a imprensa, o que nem sempre é compreensível. A comunicação das estatísticas à sociedade não se faz com anuários: faz-se através da imprensa.
Essa abertura interagiu com o próprio Instituto?
Ah, pois claro. O Instituto fazia comunicados que aprendeu a fazer em 1918. Era uma coisa solene, com um interesse pedagógico. Naquela altura, o director de estatística era um dos três assessores mais importantes do primeiro-ministro – outro era o geógrafo do Governo e o outro era o superintendente dos caminhos-de-ferro. E o director de estatística fazia o anuário de estatística que era o relatório do Governo. Era como pedir ao Alexandre Herculano para fazer um comunicado de imprensa.
A segunda, que teve uma importância interna enorme, tinha dois princípios. O tempo é medido por relógios e calendários e, quando se decide que há uma afectação de tempo para certa actividade, cumpre-se. E um orçamento é um contrato em que há uma parte que aceita e outra que cumpre.
Fizemos o nosso primeiro plano quinquenal e o primeiro programa para o ano seguinte. Foi um cálculo de recursos, tempos, responsabilidade e objectivos. Não tínhamos a menor ideia como fazê-lo: sempre se tinha seguido uma fórmula estabelecida pelo conselho do Tesouro, adoptada pelos outros ministérios. Mas era um equilíbrio que não significava nada em termos substantivos. E a ideia que a contabilidade interna era a que devia normar a execução de um programa foi uma novidade revolucionária. Hoje é uma rotina. Ninguém pensa nisso.
Quanto demorou até ser uma rotina?
A transformação provavelmente não demorou mais do que dois a três anos. Porque usaram-se meios de coação. A transformação cultural para que todos os níveis da estrutura hieráquica aceitem e compreendam levou cinco, sete, oito anos…
Uma vez que se tenha uma estrutura interna bem organizada pode começar-se a fazer perguntas importantes aos principais utilizadores. Do tipo: o que devo sacrificar – detalhes, oportunidades, uma combinação de ambas? Se ambas, em que proporções? Se não houver uma impressão muito firme junto dos utilizadores de que é uma pergunta séria, não se obtém uma resposta séria.
Uma terceira medida, que foi importante… tínhamos uma confusão sobre o que significava a expressão “bem público”. Para nós significava que todos os resultados das actividades do Instituto deviam ser distribuídos ao preço nominal, ao preço de um envelope e de um selo. Martin Wilk tinha duas máximas: a primeira era que o que se dá gratuitamente não tem valor; a segunda era que só se pode pedir dinheiro a quem tem.
A primeira parece-me hoje uma verdade muito óbvia. Mas na altura todos resistimos à noção de que íamos vender estatística. Mas devia existir um método para evitar pedidos frívolos. Como nada tinha valor, era indiferente pedir um apuramento com mil páginas ou dez páginas. O custo era idêntico, mas a utilização de recursos escassos não era. Hoje a maior parte dos institutos funciona com um sistema de preços. A divulgação através da imprensa é uma coisa: aí estamos a falar dos grandes agregados que são, verdadeiramente, um bem público. Mas os detalhes, as explicações, os cruzamentos, não podem ser tratados da mesma forma.
A segunda máxima importante é que nem todos os utilizadores começam do mesmo ponto de partida. As empresas têm mais recursos que as universidades. Se aplicar exactamente as mesmas normas a todos os sectores sociais, está se a discriminar porque nem todos começam com o mesmo grau de recursos.
Estas três medidas, que se expliquem em menos de 15 minutos, foram o principal desafio entre 1980 a 1985. A partir de 1985, a nossa tarefa foi começar a criar instituições para solidificar estas políticas.
Instituições?
Uma que é muito conhecida em institutos de estatística e que os pode paralisar. Dizíamos no instituto canadiano que os estatísticos industriais tinham nascido no inquérito e a maior parte já tinha morrido no inquérito, mas os corpos ainda continuavam a ter uma certa actividade.
Isto para dizer que não havia mobilidade entre as estatísticas sociais e as económicas, entre macro-económicas e de pequena empresa, entre demográficas e institucionais. Quando um instituto funciona sem mobilidade, corre dois perigos: um é que uma boa ideia num determinado sector nunca tem efeitos num outro; a segunda é que o instituto se transforma num organismo feudal, em que há um imperador, o marquês da contabilidade nacional, o conde do IPC, o barão das estatísticas do emprego. E o objectivo de cada um dos senhores feudais é fortalecer o seu feudo. Sobretudo, não autorizar que as pessoas mais inteligentes, dedicadas e dinâmicas possam adquirir uma experiência num outro feudo. A governabilidade de uma instituição que tem este tipo de resistência é extraordinariamente difícil.
E como se faz então?
Criando uma série de instituições. Um exemplo: hoje em dia é obrigatório, para quem queira fazer uma carreira no Instituto do Canadá, ter pelo menos duas e desejavelmente três experiências substantivas no próprio Instituto. Passar, por exemplo, em operações de campo, daí para os inquéritos industriais e daí para a difusão. Se não tiver, pode transformar-se num perito muito definido, mas nunca vai chegar a um nível de direcção. A mobilidade é uma característica institucional.
Depois, a planificação faz-se por programas e não por instituições orgânicas (departamentos ou secções). E todos os que contribuem para as estatísticas aprendem a afectar recursos, sem ter a preocupação de ter de afectar recursos às estatísticas da Balança de Pagamentos, porque se o fizer o responsável do PIB fica com inveja do seu colega. E tem uma função pedagógica: começar a ensinar aos novos membros da casa que é assim que a casa funciona e não como subconjuntos administrativos que não têm permeabilidade nenhuma. Que se rivalizam, que se invejam, não colaboram.
Isso também implica alguma continuidade…
Sim, sim! Altos e baixos, reviravoltas de direcção não ajudam. É importante tomar uma iniciativa, aprender com a experiência que tudo o que se planificou no momento inicial vai funcionar e deve haver capacidade de adaptação – que deve ser contínua – mas sem fazer zigue-zagues, reviravoltas, porque é a melhor maneira de não chegar a objectivo algum. Deve haver humildade para confessar que não se conseguiu por razões internas ou externas, mas não deve haver experimentações. Isso é dispersão de recursos e traduz-se numa incapacidade de administrar. E não se pode fazer isso num instituto em que uma das virtudes principais é a continuidade.
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Experiências críticas
“Não Vale a Pena Se Não Houver Vontade Política”
Por J.R.A.
Segunda-feira, 24 de Novembro de 2003
Jacob Ryten tem grande experiência na avaliação de sistemas estatísticos. Diz que técnicos e políticos têm de estar preparados para críticas públicas e que a vontade política é determinante para que a sua análise não resulte numa “oportunidade perdida”. Quer voltar a Portugal daqui a dois anos para ver os resultados do seu trabalho.
A par da sua experiência nas Nações Unidas, avaliou três sistemas estatísticos: o suíço, o húngaro e o chileno. Tem alguma apreensão da eficácia das recomendações?
Sim. Não me encorajam muito. Aprendemos uma coisa com a nossa experiência que queríamos evitar no caso português. Se não houver uma vontade política, simultânea com a vontade técnica – de aprender, de modificar, admitir que há problemas – não vale a pena fazer este exercício.
No caso da Suíça, o convite veio exclusivamente da parte técnica. O presidente do instituto tinha a consciência de uma série de falhas e queria ajuda para as resolver. Mas não tinha a vontade política. Nós não insistimos – porque não nos pareceu necessário – em conhecer qual era o grau do apoio político. O resultado foi que o director, que estava no último ano do seu mandato, aposentou-se, e como não havia esse apoio político, o seu sucessor considerou que pertencia ao outro mandato, que não era um problema de grande importância para o Governo suíço e não fez caso das recomendações. Eu acho que foi o nosso melhor trabalho (risos)…
E nos casos húngaro e chileno?
Os casos húngaro e chileno têm semelhanças. Nada que ver com o apoio político: tínhamos um enorme apoio político. Sobretudo no chileno. E quando digo político é no sentido muito amplo da palavra. Todos [os sectores da sociedade] compreenderam que a estatística se pode utilizar para fins políticos, mas uma boa estatística não tem nada que ver com a organização. Pode utilizar-se estatísticas para fins de uns ou outros. De modo que tínhamos o apoio inicial, o que não tínhamos era uma capacidade técnica de tomar as nossas recomendações e começar a executá-las de forma ordenada.
Depois de um exercício deste tipo, há uma oportunidade que se pode medir em semanas ou em meses, mas que não se mede em anos. Há uma boa vontade, uma espécie de lua-de-mel. Se se deixa escapar essa oportunidade, é uma oportunidade que já se pode considerar perdida. Julgo que no Chile foi o que se passou.
Quando falei com o professor José Mata sobre esta avaliação, contei-lhe a história e disse-lhe que nos parecia que duas coisas eram importantes: assegurar-nos que, por detrás dele, havia um ministro da tutela que tinha os mesmo desejos e os mesmos objectivos; que estava disposto a aceitar as consequências, que são sempre críticas. E é preciso que os dois níveis aceitem a possibilidade de serem criticados. Criticados em público. As estatísticas oficiais são estatísticas públicas, não se podem fazer estas coisas em segredo.
Também nos parece que é muito desejável ter um acordo moral com o país anfitrião, que se compromete a estudar as recomendações. Se as não executar não é por indecisão, inércia, falta de vontade em compreendê-las ou indiferença. Não tivemos um acordo deste tipo no caso da Hungria. O facto de não ter existido esse acordo moral enfraqueceu essa avaliação. E explicitamente dissemos ao José Mata: “Queremos voltar daqui a dois anos.” Não insistimos que as nossas recomendações sejam seguidas, seria absurdo; mas queremos compreender se foram ignorados, e porque o foram. Como as condições foram aceites – e com muito entusiasmo – parece que desta vez temos uma probabilidade de êxito que não tivemos nas circunstâncias anteriores.
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Pecados capitais
As Tentações dos Políticos
Por J.R.A.
Segunda-feira, 24 de Novembro de 2003
Jacob Ryten acha que um político não resiste à tentação de influenciar o organismo estatístico, mas defende que o técnico também tem o direito e o dever de o contestar. “O silêncio, o silêncio completo, não é bom para ninguém. Não é bom para o Governo, não é bom para o público nem para a instituição”, afirma.
Há três “pecados mortais” da ingerência. Ryten enumera-os tal e qual como pergunta nas suas avaliações: “Primeiro: se tem conhecimento directo ou não de casos em que o Governo pediu ao instituto que adiasse a publicação de determinada estatística. Segundo: se tem conhecimento directo ou indirecto de uma outra entidade do Governo ter pedido que num comunicado de imprensa se modificasse uma palavra ou expressão. Terceiro: se tem conhecimento de um pedido para que se modificasse um dado.”
Há países em que se acedeu aos três pedidos. E não se pense apenas nos países menos desenvolvidos. Aconteceu no Canadá. “Tenho conhecimento directo, porque me foi pedido a mim para fazer as três coisas.”
E qual foi a reacção? “Foi muito violenta. Sou uma pessoa normalmente pacífica, mas com estas três coisas tenho uma reacção muito violenta. Mas aconteceram-me e continuarão a acontecer (…). É uma tentação para todos os Governos. E muitos deles não vêem o mal. Acham que estão a actuar no interesse nacional. Não se pode ignorar o pedido, tem de se discutir e tem de se explicar quais são os efeitos de dizer sim ou não.”
Mas que conselhos daria a um presidente que fosse criticado na praça pública por um político? Ryten sorri, pensa e depois diz: “Vou responder-lhe contando uma história.”
A história passou-se num país da América Latina para o qual Ryten pediu discrição. O então presidente tinha por hábito convidar todas as sextas-feiras os jornalistas para a sua quinta. Jantavam, bebiam e tinham uma discussão “off-the-record” sobre tudo o que tinha acontecido. E aconteceu que no ano em que a actividade económica do país começou a estagnar, a taxa de desemprego aumentou repentinamente. Um jornalista perguntou-lhe então o que pensava disso. E o presidente, animado pela noite e protegido pelo “off-the-record”, respondeu que a culpa era do organismo estatístico, cujos técnicos eram pouco inteligentes e incompetentes.
Aconteceu, porém, que as suas declarações foram publicadas. O presidente do instituto convocou então uma conferência de imprensa e, aproveitando a presença de Ryten no país, em missão das Nações Unidas, perguntou-lhe se não queria participar. Ryten aceitou.
No dia seguinte, a sala de imprensa estava repleta de jornalistas. O presidente levantou-se, apresentou Ryten e disse que tinha um compromisso, mas que os outros membros da direcção do instituto ficariam. Mas não ficaram. Um por um, levantaram-se e saíram, deixando Ryten a falar com os jornalistas. A conversa demorou uma hora. “Pensei que, depois dos meus comentários, tivesse uma visita do ministério do Interior para que regressasse ao Canadá nas próximas 24 horas, porque em várias ocasiões disse que não me parecia que se deva exprimir opiniões levianas sobre as estatísticas do desemprego do organismo oficial.” Mas não. Recebeu antes uma mensagem a agradecer, porque prestara um serviço ao dizer ao povo que às vezes os políticos têm excessos.
“O que digo é que há um momento em que um técnico não pode esconder-se e dizer: ‘Eu não tenho o direito de fazer comentários.’ A integridade da instituição está baseada na sua credibilidade”, sintetiza.
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Quem É Quem
Segunda-feira, 24 de Novembro de 2003
Nome: Jacob Ryten
Formação académica: Estudos superiores em Inglaterra, na London School of Economics.
Percurso profissional: Nações Unidas, encarregue de contas nacionais trimestrais (1959-1962), onde acabou por regressar (1979-1984). OCDE em Paris (1962-1969). Organismo estatístico canadiano (1969-1979). Regressou como vice-presidente (1985-1997). Está reformado.
Im Público, 24/11/2003 Suplemento de Economia