Em jeito de a cidade e as serras

Da cidade: 

Lisboa, Alameda Afonso Henriques, 14 de Outubro de 2007, 17h30.

A tarde terminava soalheira, as prometidas saraivadas vespertinas não haviam chegado à capital. Na Alameda mais cosmopolita do país os relvados estavam ocupados por aprendizes de criquet, corredores, jogadores de bola, juvenis com idade para brincar em escorregas e baloiços e, naturalmente, a mais perene das faunas: a tribo dos bate cartas na reforma e pré-reforma.

Descendentes de gente do sub continente indiano, netos de África, eslavos, portugueses à solta com sangue índio, portugas migrados e lisboetas de gema. A praça do Martim Moniz já pede meças em diversidade a Alameda com o nome do fundador. De um modo geral gosto imenso de viver onde vivo, ali bem no meio desta fotografia.

Vista da Fonte Luminosa a Alameda invoca o popular "São mais que as mães". E é bem verdade, naquele canto da cidade, ao fim de semana, é bem verdade. Mais que as mães mas menos que as pulgas que em autêntica nuvem testemunham em jeito de tributo aos cães da Guerra Junqueiro, do Bairro dos Actores, da Carlos Mardel, da Abade Faria, da Actor Vale, a falha civilizacional que por ali vai.

A relva é um dos ambientes naturais do insecto saltitão, mas em magotes, visiveis a olho nu, fugindo em todas as direcções a cada nova passada é visão nova e de patrocínio humano. 

Os passeantes nocturnos, com trela, são candidatos à suspeição. Urinam e dejectam onde pela manhã o caleidoscópio de malta recomeçara a vida. Precisamente no mesmo sítio onde o Anad tentará o seu primeiro strike, onde a Maria dará os primeiros passos, onde o Deivid roubará o primeiro beijo, onde o Alexei dará a primeira cambalhota, onde o Silva ganhará a última sueca.

Salva-se a Fonte Luminosa? Pejada de paralelos, com uma água castanha, coberta de uma espuma suspeita, decorada com restos de colchões que alguém atirara do parapeito?

Do campo:

Ainda sou do tempo em que o monte de estrume se acumulava junto da corte, em casa do meu avô materno, na Benquerença. Tudo o que era orgânico ou ia direito para as muelas das galinhas, para o bucho do porco ou para a autêntica central de processamento que era a estrumeira vizinha. O cheiro não era agradável e as colónias de mosquitos frequentemente exigiam uma reconfiguração e carregamento/descarregamento do monte. O ofício agrário tratava de dar despacho à fábrica e o campo dar-nos-ia em retorno bom milho, hortaliças, fruta e pão.

Na idade média a simbiose com a natureza era de facto incomparável. Bons tempos para a ecologia! Bom… é certo que houve a peste negra essa praga que se transmitia pela picada da pulga. Mas de então para cá muito se progrediu em termos de higiene. No campo, por exemplo, foi-se aprendendo aos poucos com o porco: quando livre, é animal que não come onde caga, não brinca onde caga, não se aproxima sequer onde lhe cheira ao dia de ontem. O esterco de porco é aliás uma boa arma dos agricultores contra os javalis esfomeados. Pincelar os extremos da horta ou milheiral com o dito esterco costuma bastar para que a prole de javalis passa ao largo. Hoje, as cortelhas e a estrumeiras à beira de casa são uma raridade, a agricultura ou desapareceu ou mudou e com ela os agricultores.

Os filhos da cidade levaram a higiene a casa dos país mais vetustos e, no entanto, é hoje mais fácil pisar bosta de cão em plena cidade do que a bosta de vaca ou de burro no empredrado da aldeia, autênticas raridas merecedoras de subsídio e às portas da intervenção museológica.

A síntese: 

Por falar em pulgas, sabem quando fui picado pelo primeira vez por uma pulga? Há uns anos depois de ter estado refastelado na relva do Parque Eduardo VII descansando de um feira do livro. Quanto à segunda e terceira, bem, Dom Afonso Henriques que me valha! Ou São Sinfrónio. O melhor mesmo é passar ao largo do tapete verde da Alameda e ir escrever uma prosa no Adufe. Feito.

ADENDA: Este até podia ser um blogue do Blog Action Day

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