Conforme prometido na sexta-feira segue a publicação integral de "Os sonhos de Margarida" por Francisco Goulão (recebido por e-mail). É premir o rato sobre a frase "continue a ler Os sonhos de Margarida" que surge já aqui em baixo.

 

Os Sonhos da Margarida

 

A insustentável leveza da literatura light

Estudo superficial sobre causas profundas

 

        

Porque são os livros da Margarida um êxito? Porquê a mais vendida? Talvez até a mais lida? Será a mais prolixa? A mais vista e revista nos mídia? O que faz correr Margarida? Para responder a esta e outras perguntas peguei na obra da autora publicada até ao momento e li tudo de uma assentada:

 

Sei lá! (1999)                                     I

Não há coincidências (2000)           II

Crónicas da Margarida (2000)       III

Alma de pássaro (2001)                    IV

Artista de circo (2002)                      V

 

Para vosso benefício apresento em primeira-mão uma rápida apreciação do corpo literário da escritora.

 

A.

É um facto! Caso ainda não tenham reparado Margarida, tal como a Toyota há quarenta anos, veio para ficar nas letras nacionais e ficou mesmo. A própria escritora admite que, para exprimir realidades e sentimentos, tem à mão “…este mundo difícil que é o das palavras” (III). Tão difícil é que Margarida recorre com abundância ao mundo mais acessível do palavrão. Neste recurso estilístico a “merda” apresenta-se como uma palavra de eleição. A “merda” é espalhada cuidadosamente nos seus textos. Seja na acção ou no resultado, no abstracto ou no concrecto a “merda” vem sempre carregada de sentidos, potenciado novos e inesperados contextos. É uma “merda” que, no fundo, é muitas vezes comum mas raramente singular.

 

 

A merda polissémica

 

Cagou completamente em mim (II)

 

…o gajo está-se cagando para ela (II)

 

Estava só a pensar aqui numas merdas (IV)

 

…aquela merda que carregas no peito (V)

 

A minha vida é uma merda de um deserto (II)

 

Achas que eu aguentava uma merda destas? (V)

 

 

Há uma distinção clara entre a merda substantivada e as merdas indefinidas, de consistência quase abstracta, porém significativas, relativamente às quais ninguém deverá ficar indiferente. É esse o grande risco do mundo moderno: o alheamento, a alienação. Por isso a autora avisa cheia de lucidez numa frase paradoxal:“Não te cagues nessa merda!” Mas se a “merda” é polissémica já a “puta” é polivalente, na sua força adjectivadora. “Puta” precorre os textos numa escala de sentimentos que vão do desespero à paixão.

 

A puta polivalente

 

Puta da vida, é preciso ter azar. (II)

 

Puta da gravidade, dá cabo de uma pessoa…. (II)

 

Puta que pariu o relógio biológico. (V)

 

Que filho da puta. –São todos iguais. (V)

 

Apaixonei-me por este filho da puta (II)

 

O termo “cabrão” ou a sua parceira “cabra” são um ponto focal para onde convergem os discursos das personagens quando tentam definir o outro, ou mesmo quando procuram o seu lugar no mundo, diluindo assim a clássica oposição entre o Eu e o Outro.

 

A sintonia do cabrão

 

Nunca vi um cabrão como este, tudo lhe dá tesão (II)

 

Porra, este cabrão tem piada. (V)

 

As mulheres são todas umas cabras (II)

 

Esse puto é um cabrão e tu ainda não te convenceste disso (IV)

 

Portei-me como uma cabra. (II)

 

Foda-se, porque é que eu me meti nesta relação? (IV) Esta pergunta pode parecer retórica ou mesmo académica, contudo no caso vertente “foda-se” reforça o dilema interior que vivem as personagens de Margarida. Gaita ou Porra não alcançariam o mesmo nível expressivo. Foda-se impõe-se nesta frase. Nesta frase e em muitas outras.

 

Talvez f…

 

foda-se, também és  paneleiro? (II)

 

o cabelinho à foda-se (II)

 

…não deve saber fazer amor, mas lá foder, fode bem. (II)

 

Mas depois dizia foda-se e caralho e até achava chique. (II)

 

A escritora experimenta os limites semânticos do verbo, recorrendo a sua forma reflexa. O onanístico Foder-se bem como o irremediável Fodido têm ampla utilização.

 

…percebes que te fodeste para sempre (V)

 

…anda metade a foder com a outra metade e quem não fode está fodido (II)

 

A romancista chega a explorar a combinação “foder” com verbos auxiliares também expressivos para marcar delicadas distinções entre “estar” e “ser fodido”, “andar” ou “ficar fodido” e o, sempre o actual e popular, “ter fodido”. Todavia, “estar fodido” é, sem dúvida, estruturante em toda a obra.

 

…quando der por isso já está fodido (II)

 

Pronto estou fodido. Agora é que estou mesmo fodido. (V)

 

Podemos assim concluir que no léxico, Margarida lança, com mão de mestre no subtil manusemento do calão, uma ponte entre vários registos línguísticos: o vernáculo (a língua genuína de pendor vincentino) o tabernáculo (a linguagem das tabernas) e o cavernáculo (o calão das noites urbanas). Como a própria romancista admite com admirável franqueza: A educação pode ser esmerada mas os palavrões estão lá para o que der e vier (III)

 

Vimos que Margarida é sólida no palavrão, o que não a inibe de ser líquida nos adjectivos, desligados da norma e plásticos na forma. Se o cavernáculo tem um papel conjuntural, já o adjectivo é instrumental, deixando o substantivo em situação de subordinação. O cuidado com que Margarida satura a frase de adjectivos dá resultados dinâmicos. Quando, por exemplo, emparelha adjectivos semelhantes com efeito pleonástico.
 
A adjectivação polissaturada

 

Assistes atónita e impotente… (V)

 

A  passadeira esticada com afinco e critério… (V)

 

Ladainha confusa e incoerente… (V)

 

…cocktail de vertigem e loucura (V)

 

Por vezes mesmo quebrando tabús:

 

…desconfiança mesquinha e judia (V)

 

Margarida logra, ao introduzir o advérbio quase, tornar o substantivo acessório face ao combate desigual com o adjectivo. O quase é no fundo esse desejo não inteiramente saciado, essa qualidade imperfeita, a plenitude inatingível o impossible dream, afinal.

 

O adjectivo intangível

 

Um acto gratuito, quase criminoso. (III)

 

Um laço familiar, quase visceral. (IV)

 

Uma mágoa vivida, assustadora, quase arrepiante. (II)

 

…me resgatem deste inferno quase celestial. (IV)

 

…de uma forma perfeita, imaculada, quase celestial. (V)

 

Se o calão é vibrátil na sua polissemia e a adjectivação é devastadora naa sua polissaturação, é, sem dúvida, na constância das imagens que Margarida revela um sopro de originalidade, quase sublime.

 

Comparações enigmáticas de grande carga metafórica:

 

Tímido como uma bananeira (IV)

 

a lua… desenha um quarto minguante que parece uma goma de lima iluminada a néon  (II)

 

Suave e doce como compota de pêssego – a tua boca cor de pêssego também podia ser de chocolate. (V)

 

Estas são frases contaminadas pelo absurdo da própria vida:

 

Desenhando-me as feições cinzeladas (V)

 

…evaporou-se, com a implacável rapidez da volatilidade (V)

 

Fidelidade canina rara nos invetebrados (V)

 

No que toca a metáforas e outras figuras de estilo a romancista possui um universo próprio, de onde se destacam algumas constelações de grande luminosidade. Vejamos.

 

Imagens Heno de Prádia

 

Os suspiros solidários dos ramos de alecrim. (III)

 

Um ramo de alfazemas que me aquece o coração. (III)

 

..tem a frescura de um ramo de alfazemas acabado de colher. (V)

 

Se eu pudesse, plantava ramos de alfazema mágicos. (III)

 

Uma alquimia que se respira no ar. (V)

 

Imagens Bola de Neve

 

…mas já era tarde, a bola de neve tinha iniciado a descida (II)

 

…como uma bola de neve perdida numa avalanche (II)

 

 Margarida revela mesmo uma grande força ao esvaziar a metáfora de qualquer sentido na frase que obriga a repetidas leituras:…desde que ela entrou na minha vida, e a virou do avesso, qual bola de neve incontornável. (II)

 

Imagens Frequent Flyer

 

O amor é voar incálculaveis altitudes. (III)

 

Os teus olhos, os teus cabelos, e a tua alma de pássaro (IV)

 

…me crescem umas asas (V)

 

Ou então o comboio transforma-se num pássaro… (V)

 

…os sonhos estatelam-se. (V)

 

Quando a metáfora do vôo se aplica ao acto sexual estamos em presença de um imaginário decididamente mais radical.

 

Imagens Tiro e Queda

 

Voavas num espasmo (V)

 

… me penetravam eu me transformava num pássaro (V)

 

Para lá dos orgasmos sintónicos que juntos nos faziam voar como dois pássaros bêbados (IV)

 

Imagens Esther Williams

 

Por causa dele mergulhei num deserto emocional profundo… (II)

 

…a tua tristeza, mergulha nela como peixe na água (III)

 

…eu queria mergulhar neles para te ouvir melhor. (V)

 

Mergulha na dor das histórias alheias (III)

 

Mergulha o olhar na minha boca… (V)

 

Mergulhada na prostração do absurdo (V)

 

A coragem do chavão

 

Margarida é, indubitavelmente uma escritora de coragem no uso de fórmulas há muito proscritas da literatura, como seja o estafado chavão ou incómodo lugar comum, reciclando velhas fórmulas batidas.

 

…o amor (…) pode ser um r
uído sereno e doce de uma nascente que corre devagar em direcção ao mar imenso. (V)

(atente-se mais uma vez à profusão de adjectivos)

 

 

Recorre mesmo ao cruzamento feliz de várias figuras de estilo.

 

O “redundasmo” e a “pleonância”

 

Desorganização caótica (II)

 

Um heroi virtuoso (V)

 

Como sempre o ambiente é híbrido e misturado (II)

 

Maldita lucidez, abriu-me as portas da clarividência (II)

 

B.

Sexo e Amor no mundo margaridiano

 

Se em termos formais Margarida é mestre, a sua temática é um pequeno grande mundo fascinante. A oposição entre a sensibilidade e o bom senso do romance de Jane Austen é aqui o dilema entre o amor e o sexo. Aqui o sexo está, por vezes, contagiado pela perplexidade: Ou andamos todos aqui a comer-nos uns aos outros? (IV)

 

O sexo sem amor oscila entre a gastronomia e o canibalismo:

 

…a saborear-lhe a boca, os dedos, o sexo (IV)

 

…meter-lhe os dedos na boca (IV)

 

…a minha boca a morder suavemente a sua (II)

 

…mordo-lhe a boca (IV)

…deitar-te na cama e morder essa boca (V)

 

Mordias-me as mamas, a boca, a barriga (V)

 

Aqui o encontro dos corpos é também o encontro das linguagens. As personagens, sejam homens ou mulheres, recorrem às mesmas frases exaltantes ou exaltadas. Entre “o comer” e “as trancadas” o discurso amoroso é irremediável e inexoravelmente unissexo.

 

Discurso “à gajo”

 

 Há coisas fundamentais para a saúde de um tipo e mandar uma trancada é uma delas (IV)

 

…há mais de dez anos que dá trancadas na Patrícia (II)

 

Voltei a cobiçar-lhe as mamas fartas (IV)

 

Ela dava-me tusa, tinha umas boas mamas, mas não era grande coisa na cama (IV)

 

Eu não ando com mulheres, como-as e pronto (II)

 

Discurso “à gaja”

 

 … à procura de uma gaja para mandar umas trancadas  (IV)

 

 O Afonso continuava a comer-me quando queria (II)

 

Mas quando o sexo encontra o amor não é avaliado como “… bom fisicamente, mas mau emocionalmente” (V). Deixa de ser o equívoco em que “…comemo-nos uns aos outros e chamamos a isso amor”(V), e é promovido à “… magia do acto sexual (II)”.

 

Margarida segue um caminho linear na cartilha do amor (seja ele eterno ou pontual). O amor é um tema recorrente na sua vasta obra em que a coxa ou as ancas evocam realidades corporais mais intensas. Desta forma, Margarida apela tanto à metonímia, como à sinédoque, mas sempre com efeito perturbador.

 

O Sexo da coxa

 

…tocava-me o sexo que escorria de impaciência (V)

 

… me fazia escorrer de prazer pelas pernas abaixo (V)

 

Sentia os teus olhos agarrarem-me as ancas (V)

 

…mãos compridas que me agarravam as ancas e o cabelo (V)

 

…e me agarravas as coxas sedentas, fanáticas… (V)

 

Como confidencia a própria Margarida numa entrevista: “Os livros são processos catárticos. Arranjamos uma ficção que vai vestir as obsessões que temos.” (DN- 2003)

 

Apesar deste sexo “sublime, quase celestial”, a romancista não esquece o vazio da sociedade de consumo e a desorientação das relações descartáveis.

 

…devem ser todos fracos da piça (II)

 

…viciada nesta sucessão imparável de tapa-buracos gratuita e desgastante… (II)

 

Comia gajas umas atrás das outras, não havia nada nem ninguém que me interessasse. (IV)

 

 

 

 

 

C.

A grade rival de Margarida

 

A romancista é tida como original, única quase estupenda. Há mesmo quem a considere uma querida. Não iria tão longe. Mas as verdades são para ser ditas! Dentro do universo literário onde volteja com grande à vontade e determinação Margarida tem uma rival, uma figura literária da sua grandeza: Barbara Cartland – “the Queen of Romance”, a escritora mais lida de toda a literatura com 630 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo. B.Cartland deixou-nos 623 romances, muitos delas obras maiores da literatura como Amor nas nuvens, O Dandy Perigoso, Enfeitiçada, Sem Fuga Para o Amor ou O Amor Invencível. Há, curiosamente, muitos pontos comuns entre as duas escritoras. Tal como Margarida, também Barbara ficou conhecida pela sua escrita rápida e ágil, as suas boas maneiras e a sua telegenia. Também os mídia tinham um especial apreço pela romancista inglesa e pelas suas frases bombásticas que faziam excelentes títulos nos tabloídes. Como ela própria dizia “Se não for espalhafatosa, ninguém repara” e, talvez por isso, a sua imagem de marca fossem os atavios de chiffon rosa de que se vestia da cabeça aos pés. Também Margarida é conhecida na imprensa pelas suas publishing remarks, como quando declarou:“O primo Basílio representa tudo o que de cabr&a
tilde;o e filho da puta um homem pode ser”. (DN- 2003).
Como Barbara, Margarida tem uma capacidade de escrita espantosa – crónicas, romances, guiões, e por ai fora. Como Barbara, Margarida é uma musa inspiradora para muitos aspirantes a escritores, no seu afã multiplicador de leitores, escritores e críticos, Margarida revela claramente uma literatura policárpica (que tem ou produz muitos frutos), tal como Barbara que chegou a produzir vinte romances num só ano! Ditava-os, estirada numa chaise longue, habitualmente dois de cada vez, um de frente para trás e outro de trás para a frente. A mensagem subjacente a todas as suas obras é, ainda hoje, universal e inspiradora e quase original: “O mundo precisa de mais beleza e amor”.

 

É verdade que Barbara Cartland pertencia à geração que defendia com unhas, dentes e pernas fechadas a virgindade pré-nupcial. Os seus livros retratam um certo amor cortês, heróis galantes e um mundo onde o amor tudo vence. Já Margarida sabe que a mulher moderna não renuncia à carne enquanto procura o verdadeiro amor. Os tempos são outros. As personagens já não “…se beijam num céu sem nuvens. (conclusão de A Sombra de Pecado de B.Cartland). Para Margarida o céu já não pode esperar!

 

A heroína margaridiana está em luta permanente com os elementos, o quotidiano, os cromos, os azeiteiros os filhos da puta e os cabrões… e, nos entrementes, vai recorrendo aos prazeres do sexo na sua busca incansável de felicidade. Se Barbara se agarra ainda à monogamia, Margarida cede, sem reservas, à poliandria. Em certos livros a autora põe várias personagens a falar na primeira pessoa, em romances verdadeiramente polifónicos. Apesar de ficção, as suas personagens estão próximas de nós e sobretudo estão próximas dela. Margarida é, nos tipos (e tipas) que povoam os seus romances, por vezes biográfica, por vezes intimista, mas arrancando sempre as personagens de dentro de si como quem puxa, de alguma forma, pelas próprias tripas. Numa primeira leitura apressada, o corpo literário de Margarida pode parecer monótono e mesmo confrangedor, mas não se iludam! Não lhe podemos negar a capacidade de ser simultaneamente polissémica e polivalente no léxico, polissaturada no adjectivo, polifónica na narrativa, policromática nas personagens, poliândrica no tratamento do sexo e do amor e policárpica na escrita. Ah valente!

 

D.

O sonho estaladiço e crocante da Margarida

 

No fundo, a romancista retrata como ninguém a aspiração humana de ascensão e reconhecimento social, entre o sonho do pálacio e angústia da barraca, entre o medo da vida sem estilo e a casa com peristilo. É esse mundo que Margarida por vezes evoca quando fala do povo, lá longe no fundo da ladeira social. Esse povo que faz parte da paisagem dos seus romances e ao qual a autora se vê por vezes obrigada a apontar o dedo ora enojada ora arrepiada. O povo margaridiano mora invariavelmente para os lados da Charneca ou da Cova do Vapor – “Não gosto da margem Sul” (III) ou num bairro popular de Lisboa cheio de bêbados e miséria fadista onde andam “…todos de ténis e fato de treino, excepto a avó que anda de preto com um lenço à cabeça.” (III) (uma discreta homenagem ao filme “Feios, Porcos e Maus” de Ettore Scola.)

 

Povo, a massa que pode azedar os sonhos da Margarida

 

Empregados com ar fora de moda (IV)

 

…empregados suados de cabelos oleosos (III)

 

empregadas…de cabelo escorrido e óculos graduados (II)

 

Empregados míopes e obedientes (V)

 

…polícias com cara de abécola (III)

 

taxistas… de aspecto pouco lavado e digno (III)

 

enfermeiras…velhas gordas e atarracadas (IV)

 

Porque, como confessa uma das suas vozes polifónicas, “o povo é mesmo assim, foi educado para bizarrias desdo o berço de palha e não há nada que o espante". (V)

 

Se o povo p+p (poliester e poliban) é de fugir a sete pés, o que a espera no topo da escala social não é melhor. No desejo de ascenção social as heroínas de Margarida sofrem. Por vezes caiem (em regra sobre, ou por causa de um cabrão ou filho da puta). Nessa altura agarram-se a “…Kleenexes competentes e discretos” (IV), levantam-se e voltam a subir a pulso. Correndo sempre o risco de ao chegarem ao topo encontrarem “…todos a comerem-se desvairadamente uns aos outros, como é típico nos meios ditos ‘evoluídos’ onde reina o poder e dinheiro.” (V)

 

A realização do sonho das personagens de Margarida é uma autêntica viagem iniciática, na permanente contradição dos dias suburbanos e das noites urbanas. Uma travessia repleta de perigos – “fufas fanáticas”(II) – ou provas devastadoras “…uma hora a dar corda a dois paneleiros!”(II). O mais importante neste tão difícil trajecto em direcção à felicidade é não perder “… o porte aristocrático de uma certa burguesia.” (III). Para ultrapassar os fracassos e as desilusões a solução passa pela música, o aconchego da “manta roubada num vôo de longo curso”(V) e as citações literárias, sejam elas do O’Neill, do António Lobo Antunes e do “… meu querido e adorado António Alçada Baptista” (III) (atente-se à familiaridade). Margarida e o mundo literário nacional é, caso ainda não tenham reparado, tu cá, tu lá, bardamerda.

 

As heroínas de Margarida são aparentemente projecções lineares do seu ego. Em “Alma de Pássaro” a personagem principal define uma escritora em ascensão, num curioso jogo de espelhos: “Escreve razoavelmente, com vivacidade, é muito contemporânea e tem humor. Além disso conhece mais ou menos toda a gente, é gira, morena, com um ar exótico e moderno. Praticamente todas as condições para ser um grande sucesso editorial.”. É assim que a ficcionista se revê ao espelho, talvez um pouco menos morena, talvez um pouco mais loira.

 

Margarida não é, como alguns dizem, o retrato de uma certa sociedade, mas, é de facto, o retrato de uma socieda incerta. É esta, no fundo, a condição humana, ou melhor a condição da burguesia urbana empurrada para a “suburbia”. Os sonhos da Margarida i
nterpelam-nos? Sem dúvida! Seremos nós cabrões ou filhos da puta? Será a nossa vida uma merda infernal, quase celestial? Teremos a clarividência da lucidez? Poderemos vir algum dia a aspirar a orgasmos sintónicos? Ou estaremos votados para todo o sempre ao poliester e ao poliban, ao fim e ao cabo, a uma vil existência p+p? Margarida lança pontes entre o sexo e o amor, entre a linguagem virtual e gutural, entre noite urbana e a existência suburbana, entre realidade crua e a viagem onírica. É a reportagem por extenso da revista “Caras”. Margarida é a massa dos sonhos suburbanos. Margarida é o açúcar que polvilha as farturas da nossa Feira Popular. Ficam avisados.

 

                  

Francisco Goulão, Bruxelas, Janeiro de 2003

 

 

Passaram três anos. Margarida continua a publicar e a aparecer por aqui, por ali. Possivelmente não acrescentou nada de novo. Como poderei eu saber? Não tive ocasião de ler o resto da sua prolixa produção. Mas nas variadas e frenéticas operações mediáticas da autora há um facto inquestionável. É verdade! Na roupa, na pose, na persistência e até no sorriso, Margarida está cada vez mais Barbara Cartland. Um toque aqui e ali, uma chaise longue e pronto! Não percisa mais. Estou até desconfiado que nada mudou na receita da sua escrita. Mas atenção! Já não frita sonhos para fora. Tal como o outro que “era mais bolos”, ela agora “é mais farturas”. As farturas da Margarida. Mais uma vez ficam avisados.

 

 

                  Francisco Goulão, Bruxelas, Abril 2006       

Discover more from Adufe.net

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading