Amigos, se tudo correr bem regresso depois da Páscoa, entretanto fui mais uma vez ao baú. A que se segue tem exactamente 7 anos e com ela fecho os proto-blogs… Talvez se lhe sigam algumas “sequelas” mais actuais 🙂

Querido filho…

Sortelha Velha, 3 de Abril de 1997

Querido filho, nora e netos, espero que convosco esteja tudo bem, que nós por cá, felizmente, vamos indo.

Muito estimamos a tua carta, meu filho, que cá recebemos pelo Entrudo.

Eu e o teu pai só agora tivemos um bocado para descansar, pois desde que a neve se foi temos andado sempre num andor.

Estou certa que tentaste telefonar cá para casa agora pela Páscoa, mas os telefones estão avariados desde que arderam os fios no incêndio da semana passada, que queimou metade da serra. Dizem que ainda esta semana os põem a trabalhar… Logo vos telefonamos.

Então a nossa Maria está-se a dar bem com o emprego novo no Ministério? E o Carlitos já foi para a Alemanha com a selecção de natação? E a Aninhas continua a ter boas notas?

A Ti Joaquina do Ti Inácio disse que vos viu às compras em Lisboa quando aí esteve para o baptizado do neto. Contou-me que andáveis todos engripados. Pois a malina cá em casa só atacou o teu pai: tombou-o na cama por três dias, mas já está fino, graças a Deus. O que lhe valeu foi o chá de rebentos de pinho que lhe dei; olhai que é remédio santo!

Por cá o tempo vai bem, mas estes calores fora de época trazem-nos em cuidados: as culturas estão todas adiantadas, está tudo muito viçoso e como em Abril ainda é tempo de virem as geadas pode-se abrasar tudo.

Mas se não houver azar vamos ter um ano de fruta como já não há memória: então as cerejas hão-de ser ao preço da chuva e de primeira qualidade.

Perguntas pela ribeira: a ribeira vai grande, sim senhor. Desde que temos a barragem, corre todo o ano, até corre mais no Verão porque o resto do ano trazem-na fechada. Precisas é de vir cá de férias mais de dois dias e fora da época das festas para veres o que isto mudou nos últimos anos.

Se vierdes com mais tempo, o teu pai diz que quer levar-vos à barragem para vos mostrar o calibre dos peixes que já se lá pescam.

Por falar em barragem, os malandros trazem a água do regadio fechada. Não disseram nem ai, nem ui e fecharam a água quase por um mês. Dizem que é para limpezas, mas se demoram muito e se entretanto não chover, lá se nos secam também as favas e o resto da horta.

O que andamos cá a fazer? O que haveria de ser, meu rico filho? O teu pai andou o mês de Fevereiro a semear pinhos no Cu da Raposa e a limpar o pinhal da sorte da Fonte Nova. Se não fosse eu a pôr-lhe tino nem cuidava de lavrar o Olival Basto. Apanhando-se na serra perde-se com aquilo! Este ano diz que viu um lince! Disse-mo a mim e ao povo todo! Diz que o viu na barroca do Chinquilho a correr atrás de um coelho.

Eu nem sei o que seja o animal, mas o teu pai andou cá uns dias pasmado a dizer que era um lince, o bicho mais lindo que viu na serra.

Mas já chega de chouchices.
O pinhal da Fonte Nova para o ano está pronto a cortar e eu tenho andado a ver se arranjo um madeireiro de confiança, mas está difícil. O Ti Aniceto, por exemplo, vendeu um pinhal há dois anos e só agora é que lho cortaram. O homem bem os ameaçou que vendia outra vez aquelos pinhos a outro madeireiro, pois era um crime não se estarem já lá a fazer pinhos novos.

Sabes qual foi a paga dos madeireiros? Foi ameaçarem o homem com a justiça dizendo que têm três anos para os cortar, depois de os comprarem. O mais que lhe fizeram foi deixarem lá a lenha toda, de tal forma que não há pinho que vingue no meio de tantos galhos caídos.

Se o Ti Aniceto for pagar a uns homens para lhe limparem a terra, gasta mais do que lhe deram pelos pinhos! Mas cá nos havemos de desenrascar.

Ontem acabámos de limpar as oliveiras do Chão da Porfia, que, apesar de não ter tornado a chover, ainda estão bem verdinhas. Na parte baixa, ao pé do ribeiro, até já têm chora. De certeza que vão dar mais azeite do que as do Olival Basto.

É verdade, no cabeço do Chão da Porfia, arrancámos aqueles toros velhos de carrascas e plantámos meia dúzia de cordovil. Se se derem tão bem como as outras cordovil, daqui a uns anitos já dão bom azeite que ainda é o que vai dando alguns tostões. É isso, o mel e os subsídios.

O Manel da Fisga o ano passado plantou dez hectares de tabaco que trouxe arrendados: assim que mamou o subsídio deixou a plantação com tudo por colher e agora ainda goza com os outros.

Quem aqui esteve também no gozo foi um dos Catarinos Trambalazanas. Veio cá para a burricada e desapareceu outra vez. Ainda dizem que o denunciaram e que veio cá a polícia, nesse dia, a ver se o caçava, mas nós não vimos nada.

A cunhada dele diz que ele já enterrou o dinheiro todo do subsídio na Espanha. O sócio, o carteiro, é que parece que já por lá tem um quinta grande; se calhar anda a preparar outra golpada.

A fabriqueta que eles começaram a construir aqui, diz que vai voltar a ser apoiada pela CEE, mas desta vez parece que é para um depósito de leite, vamos a ver…

Cá para o nosso lado é que pinga pouco, um subsídio para o gasóleo, um pouco pelas oliveiras e mais nada. Mas isto de viver à custa de subsídios também é um engano, não é verdade? Os miúdos do povo que não se metam nesse vício senão quando aquilo se acabar não sabem fazer nada. Mas a malta jovem agora já tem mais estudos, por isso não há-de ser nada.

Quem por aqui anda com grandes ganas é o João José: reformou-se da França, já fez uma casa e veio para cá com a família. O filho parece que é engenheiro-agrónomo e anda aí de redor dos engenheiros do emparcelamento. É um rapaz simpático e conversador com toda a gente.

Diz que vão comprar uma grande propriedade para plantar beterraba sacarina. O teu pai também já se convenceu de que são gente honesta e trabalhadora e que vão ganhar bom dinheiro porque há para aí uma fábrica de açúcar nova a pagar bem.

Ele anda a falar em fazer-se sócio e eu não sei se lhe hei-de dar para trás ou para a frente. O que é que achas? Sabes alguma coisa disso de açúcar de beterraba? E da fábrica?

No sábado passado houve uma burricada e a festa foi animada no alto de Santa Rachada. Esteve cá a televisão e até deu à noite no telejornal, vocês não viram aí nada? Eu ainda lá apareci mais o teu primo Alfredo. Prometeram que se houver burricada para o ano tornam cá.

Enfeitaram-se as carroças e os burros, fizeram um cortejo na aldeia – até passaram à nossa porta – e, depois, foram para o monte onde se juntaram com os das aldeias dos Cabeços. Aliás, foram, não; fomos, que nós também lá chegámos. Comemos lá todos e no fim fizeram um teatro a imitar as lides cá da terra do tempo dos antigos e de agora. Não sei é se chegou a haver corrida com os burros porque tivemos que nos vir embora para aproveitarmos a boleia no tractor do Ti Ã?lvaro Farrusco.

Olha que ainda veio muita gente! A festa foi organizada pela gente nova e por dois ou três mordomos, à revelia do senhor padre… Diz lá ao Carlitos e à Aninhas se não querem vir para o ano que nós arranjamos-lhes burro, carroça e decoração!

Bom, a carta já vai longa e ainda não tem o tamanho da nossa saudade. Se o telefone se puser bom, se calhar ainda falamos antes de esta aí chegar, senão, cá vai ela.

É verdade, vocês aí também vêem o cometa?
O Ti �lvaro Farrusco diz que aquilo ainda vai cair numa sorte dele como caiu um, quando ele era pequeno, na palheira do seu pai! Como vês ele está na mesma. Manda dizer que está de mal contigo e que não lhe apareças pela frente sem trazeres uma garrafa daquela pinga que lhe deste aí em Lisboa.

Beijos para todos destes que muito vos amam.

Joana Barros e Jerónimo Fraga

Ouve: os dois cheques que seguem são para o Carlitos e o outro para a Aninhas. Diz-lhes que é a Bica da Páscoa dos avós.

Adeus

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