Nos partidos há uma mania particularmente nefasta que passa pela concepção de que as eleições são um momento de absolvição total dos pecados passados. Cavaco saiu, o PSD foi derrotado? Então jamais alguém nos poderá recordar os erros do passado porque já pagámos por eles.
Guterres saiu, o PS foi derrotado? Ah! Já perdemos as eleições para Durão Barroso logo, já pagámos os nossos pecados. Ferro Rodrigues disse-o; Sócrates parece acreditá-lo ao dar provas de companheirismo imaculado com a exaltação do mais-velho-Guterres, seu amigo.
Este era o pior sinal possível que eu esperaria ver na campanha do PS e digo esforçando-me por ser coerente com o que aqui venho escrevendo há largos meses. Se na boca diária do discurso político é admissível recusar discutir o que se fez há 20 anos quando o que deve ser preferencialmente julgado é a legislatura que fecha, não deixa de ser fundamental para atribuir credibilidade à parte positiva da mensagem – a proposta política construtiva – que o eleitorado perceba exactamente que pecados passados se estará na disposição de evitar com maior afinco.
Nunca fiquei satisfeito com o mea culpa do PS no pós António Guterres. Nunca percebi muito bem o que é que o PS e os seus dirigentes acham que falhou e hoje, essa difusa admissão de culpa que houve, revela-se demasiado frágil para afastar o fantasma que outros sabiamente agitam sempre que António Guterres surge num ecrã.
Guterres fez uma travessia do deserto, talvez até queira ser Presidente da República, talvez isso até fosse possível mas o silêncio que houve no tempo certo para ele ser quebrado, face à “pesada herança” socialista, agora paga-se com juros. E nem eu que já me dispus a votar PS me escuso de o cobrar. Não é assim que votarei pela positiva caro José Sócrates.

Se não é agora a altura de assumir culpas do passado de forma explícita, e convenhamos esse tempo não é em plena campanha, deveria ser ao menos altura para implicitamente se perceber o que se fará de forma diferente. Apresentar António Guterres como cabeça de cartaz no início da campanha com toda a simbologia que tem, é destruir a própria possibilidade de se limitar avarias por via dessas eventuais pistas sobre o que marcará a diferença face ao PS do passado. A menos que verdadeiramente estejamos a caminhar alegremente para reproduzir o passado.
Uma coisa é avaliar-se o desempenho do governo cessante e trazer essa discussão para a campanha – e isso é justíssimo – outra coisa é ACREDITAR que há sempre uma absolvição futura que nos permitirá partir do zero e repetir onde já praticámos o zero.

E para que conste, não querendo recuar mais no tempo, já a 10 de Outubro escrevia:

Uma das piores sensações que senti com o Governo de Guterres foi o pedinchar universal e as sub-sequentes tentativas de apaziguamento dos governantes.
Particularmente no segundo governo parecia estarmos perante a lei da melhor carpideira ou do chorão-mamão.
Recordo-me também que José Sócrates foi um dos raros casos de governantes a quem ouvi dizer “não” e se viu a bater o pé por alguma coisa. Curiosamente esse é o principal capital de Sócrates hoje, particularmente relevante enquanto não se ouvirem outras causas com definição detalhada sobre aquilo que considere digno de que se bata o pé. Preocupa-me cada vez mais que não tenha de se comprometer antes de se apresentar a votos… (…)
in 15 de Outubro, Adufe.
Publicado também na Grande Loja do Queijo Limiano.

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