De há uns anos para cá, talvez inspirados pela sustentabilidade da economia circular, talvez patrocinado pela necessidades de gerir as devoluções crescentes, que surgiam do comércio digital, talvez encaminhados pela maximização do lucro potenciando uma mercado secundário de produtos usados e semi-usados onde há claramente dinheiro a fazer, constatou-se o alargamento a muitos produtos do negácio das vendas recondicionadas. Uma venda recondicionada é uma venda de um produto que já teve algum nível de utilização e que é reempacotadado e vendido como quase novo, com um desconto no preço e, geralmente, com algum tipo de garantia.
Hoje em dia todos sítios digitais de empresas reputadas têm a sua área ou gama de produtos recondicionados e em muitos deles, estes produtos surgem mesmo no topo das pesquisas com indicações mais ou menos óbias à condição de recondicionado ou refurbished.
Descubro agora que este mesmo negócio chegou a à política. Neste caso o mercado é o das promessas eleitorais, em especial a promessa eleitoral de descida do IRS.
Um brevíssimo enquadramento da história ainda de 2023
Se a memória não me falha, em finais de agosto de 2023, o PSD propôs que ainda em 2023, pudesse ocorrer um corte do IRS de €1.200 milhões com impacto até ao 8º escalão. Não sendo legalmente possível mudar as regras do IRS a meio de um ano, o tema iria ficar para a discussão do Orçamento do Estado para 2024. E assim foi.
Sucede que, o governo de então, já tinha a intenção de reduzir significativamente o IRS há algum tempo e veio, de facto, inscrever um corte de cerca de €1.327 milhões na sua Proposta de Orçamento do Estado para 2024 com impacto até ao 5º escalão (e de que beneficiariam todos os contribuintes). Um corte que era assim superior ao proposto pelo PSD em €127 milhões. Um caso de competição eleitoral interessante para os eleitores, no sentido em que a disputa promoveu um corte sustentável do IRS, mais elevado.
O double down poucochinho de 2024
Até aqui, tudo normal. Sucede que, mesmo depois de aprovado o Orçamento do Estado para 2024 e já depois deste estar em vigor, a partir de 1 de janeiro de 2024, em pleno contexto pré-eleitoral e mais tarde eleitoral, o PSD (ou se preferirem a AD) veio a usar como proposta fundamental visando a melhoria das condições de vida da “classe méda” uma descida de IRS de €1.500 milhões face ao esforço de 2023.
Ato contínuo, em vários debates, comícios e entrevistas, o líder do PSD e atual primeiro ministro, assim como o atual Ministro das Finanças, avançavam com um corte global de €3.000 milhões em sede de IRS. Um valor que a menos €173 milhões, coincidia com o que resultaria da soma do corte já em vigor com o anunciado de €1.500 milhões.
A verdade é que quem tivesse estado atento às “letras miudinhas” e estivesse especialmente embuindo de um espísito cínico, polvilhado de uma brutal desconfiança, poderia ter acreditado que estava a ser enganado com tantos números a voar. As referências ao ano de 2023 num caso e à legislatura, no outro, apareciam, por vezes (nem sempre, é certo) aliadas ao valor €1.500 milhões e €3.000 milhões. respetivamente.
Mas, haja fé nesta terra, ninguém, pelo menos até ao debate do programa de governo realizado na última semana, revelou ter esse nível de cinismo e desconfiança. E todos, políticos, jornalistas e eleitores, consideraram que ninguém no seu perfeito juízo iria estar a anunciar com total destaque e primazia, uma proposta eleitoral de corte de IRS de €1.500 milhões que, na realidade, seria uma promessa recondicionada. Uma promessa que era mesmo já realidade e estava em vigor, sendo obra de outro governo, até ao valor acumulado de €1.327 milhões.
O líder do PSD foi inclusive, durante a campanha eleitoral, acusado pelo líder do PS de estar a apresentar um conjunto de promessas insustentáveis em cima de um conjunto de previsões económicas irrealistas. Na realidade, prometiam-se enormes cortes no IRS e no IRC, mas também se prometeu atender a exigências de valorização salariais de várias classes profissionais de centenas de milhares de efetivos, entre outros. E o número do corte de €1.500 milhões surgia precisamente nessas contas como um impacto anual adicional que delapidaria fortemente a capacidade financeira do Estado.
(Continua e conclui no próximo artigo a prublicar pelas 20h15m)