A frase será de Dulce Rocha, vice-presidente do Instituto de Apoio à Criança citada por uma peça do Jornal SOL com um título que, a traduzir uma realidade factual, seria perturbador “Seg. Social pressiona grávidas a abortar”. Um titulo que, à luz do relatado nos parágrafos subsequentes, enriqueceria a peça se, no mínimo, terminasse com uma interrogação.
No artigo descobre-se que a afirmação do título corresponde à denuncia feita por várias organizações da sociedade civil que se enquadram nos movimentos pró-vida (que se opuseram à legalização do aborto) e que operam ativamente no apoio a mães com necessidade. Ameaça, coacção, instigação do medo são algumas das acusações feitas aos serviços da segurança social ou de saúde. Estes estarão a informar jovens mães com dificuldades económicas (que terão afirmado querer prosseguir com a gravidez) que a alternativa ao aborto é entregarem os recém nascidos a instituições do Estado por manifesta impossibilidade económica para sustentar um filho ou mais filho. Será efectivamente isto que se passa? E a ocorrer será um fenómeno generalizado? Ou estaremos perante uma análise destorcida do que será o cumprimento do dever de informação perante as opções disponíveis de planeamento familiar (nomeadamente o recurso ao aborto) confundindo-se o esclarecimento às jovens mães com o incitamento à prática do aborto?
Em jeito de aparte, defender que os serviços de saúde ou da segurança social não devem apresentar as opções disponíveis, informando apenas se inquiridos especificamente, como alguns defendem, parece-nos promover o risco de deixar singrar a ignorância tantas vezes patente em jovens mães, seja quanto à drástica opção do aborto seja quanto a opções menos extraordinárias de planeamento familiar.
Mas retomemos, a questão do artigo. Quem se recorde dos termos e moldes com que decorreu o debate público aquando do referendo do aborto, saberá que algum distanciamento face a afirmações bombásticas será recomendável, tão recomendável quanto a procura de fundamentos que permitam aferir imparcialmente o que se estará a passar no terreno.
Na peça são apresentado alguns testemunhos que atestarão sobre casos concretos, envolvendo, entre outros, adolescentes, nos quais os serviços do Estado procurarão promover o aborto como a opção mais adequada, mesmo quando a principal limitação da jovem mãe é exclusivamente. Nos vários exemplos arregimentados, o Estado é sempre apresentado como estando disponível para financiar a institucionalização das crianças, mas nunca se achando disponível para apoiar as famílias de modo a que estas usufruam de autonomia financeira para disporem de condições adequadas a um ambiente familiar. Em suma, o cenário traçado é o mais negro possível e o Estado fica a pouca distância da perfeita diabolização.
A peça não termina contudo sem dar nota de que o cenário descrito nos exemplos apresentados poderá não ser exactamente generalizável… Afinal, o testemunho das famílias carece muitas vezes de contraditório, o apoio financeiro direto às famílias chega a ser efectivado sendo os recursos indevidamente canalizados por uma má gestão de finanças da família, provando-se a irresponsabilidade dos pais e testando-se assim a afirmação de que o problema é exclusivamente de escassez de recursos financeiros. É também sublinhado por parte de responsáveis de serviços da acção social que provavelmente serão mais as situações em que se prolonga excessivamente a procura de sucesso na integração familiar do que aquele que seria mais desejável para as crianças que acabam institucionalizadas.
Um leitor sem preconceitos chegaria a esta parte da peça verificando o confronto de opiniões sem que contudo parecesse evidente onde está a verdade. Repito, um leitor sem à priori. É aqui que chegados às últimas linhas do artigo, as mesmas que levantam as questões mais pertinentes e transversais que preocuparão mais leitores, independentemente das respectivas questões religiosas e que, apenas indirectamente, ainda que de forma inequívoca, tem a ver com a questão do aborto.
A pobreza dos potenciais pais é ou não um factor determinante para a decisão quanto ao destino a dar aos recém nascidos? E estará esta situação a evoluir com o agravamento dos casos de pobreza que ocorrem em paralelo com a redução dos apoios sociais destinados precisamente a quem se encontra em plena carência (seja via redução do RSI; dos subsídio de desemprego; do abono de família, etc).
Infelizmente, quando a jornalista coloca a questão que permitiria perceber até que ponto estamos perante um genuíno alerta que interpelasse uma intervenção política, esbarra na ignorância ou sonegação dos grandes números pois “não foi possível obter dados sobre o número de crianças institucionalizadas e dadas para adopção nos últimos quatro anos ou saber em quantas destas situações as decisões se prenderam com a falta de condições económicas e não com abusos ou maus-tratos.”
Até o dia em que a recolha e/ou difusão e análise pública desta informação não fizer parte da ordem do dia, estamos condenados a dirimir exemplos mais ou menos representativos e/ou interpretativos e persistiremos numa conversa animada, por vezes, demasiado fracturante e tragicamente ignorante. Será que não há mesmo dados sobre o assunto?
Publicado originalmente no 365 Forte.