Estimado João Morgado Fernandes, director adjunto do DN (e se me permite caro vizinho) segue esta em jeito de carta. Poupo-me a enviá-la para o DN pois não quero competir com os escrevedores de cartas habituais que em tempos por esta esfera foi apresentando, por isso além de seguir por mail "não oficial", tomo a iniciativa de lhe dar pretexto para aqui trocar umas ideias sobre o seu editorial de ontem se assim o entender.

"Quando, no início desta legislatura, se percebeu que o Governo, forçado pelas circunstâncias orçamentais, se preparava para nivelar por baixo muitas das regalias dos portugueses, a começar por aqueles que mais directamente dele dependem, também se percebeu que a tarefa não iria ser nada fácil, que a paz social dos últimos anos estava posta em causa.

Diga-se que, até agora, aquilo a que se convencionou chamar de "rua", ou seja, os protestos populares, fica relativamente aquém do que seria de esperar tendo em conta as várias frentes de guerra entretanto abertas pelo Governo.

Chegou agora a vez dos militares. (…)"

Posto isto assim parece-me que começamos logo colocando as coisas numa falsa perspectiva. Poderá até parecer que em Abril de 2005, quando este governo iniciou funções, haveria paz social entre os militares e o poder executivo e que agora, quando finalmente lhes calha na rifa terem de dar o seu contributo lhes saltou o verniz… Atrevo-me a dizer que haverá muito poucos, se algum, grupo de servidores do Estado onde a paz podre é tão antiga. Diria mesmo que desde que se iniciou a inevitável e indispensável modernização das Forças Armadas (FA) em 1989 – salvo erro com Fernando Nogueira – que o relacionamento se tem vindo a degradar, mais pela falta de rumo estratégico e táctico dos sucessivos governos do que pela simples e relativamente pouco danosa reacção corporativa.

" (…) Há um discurso recorrente acerca da falta de modernização, ou adaptação, das forças armadas portuguesas ao período pós-guerra colonial que é, em certo grau, uma falácia – o serviço militar obrigatório acabou, houve um redimensionamento das estruturas e os militares portugueses são crescentemente solicitados a tarefas que exigem grande profissionalismo, como é o caso das missões no exterior, dando sempre boa nota de si. A adaptação está, portanto, a ser feita, sem que daí esteja a resultar qualquer quebra de prestígio da instituição.

Há, no entanto, no País uma evidente falta de recursos, a começar por aqueles que o Estado tem à sua disposição. (…)"

Se nos centrarmos em anos mais recentes o descontentamento face ao desnorte na gestão das FA patrocinado pelos avanços e recuos das decisões políticas (crescentemente focando também os benefícios particulares previstos para os pessoal militar) tem sido evidente e alvo de notícias, algumas das vezes por via de palavras "corajosas" de Chefes de Estado Maior outras, muitas outras, saíndo da boca do Chefe de Estado Maior Supremo das Forças Armadas, um tal de Presidente da República. Apelo à memória do João Morgado Fernandes.

Como perceber o afã de extinguir o Serviço Militar Obrigatório (SMO) e o seu posterior adiamento sucessivo por falta de decisão política? A demagogia política vitimou vários Ministros desta área quando finalmente se percebeu que extinguir o SMO exigiria (como as chefias militares sempre disseram) maiores investimentos orçamentais pois sai mais caro aliciar voluntários (a contrato) do que pagar o pré a recrutas. E no entretanto quanto se desperdiçou em dinheiros públicos com incorporações de 4 meses durante anos e anos, sem qualquer vantagem militar (ou orçamental) para o país? Quantos anos, por exemplo, andaram os Tribunais Militares em processo de encerramento – e quantas vezes Jorge Sampaio invectivou o Governo para que se cumprisse definitivamente a lei? Quantos anos andaram (e ainda andam) algumas unidade militares em processo de encerramento sem que haja determinação política para definir o modelo ou que se chegue à frente com o dinheiro que por vezes se tem de investir para centralizar antes de poder colocar à venda o imobiliário libertado? Quantas vezes material militar dispendioso e nalguns caso acabadinho de comprar tem ficado em "doca seca" por falta de verba para combustível ou mesmo de pessoal especializado com o treino de manutenção mínimo para os poder operar? Quantas versões diferentes conheceu a Lei de Programação Militar ao longo dos últimos anos? Quantos Ministros da Defesa teve este país desde 1989 e quantos governos? Quantas vezes a política para a Defesa mudou de rumo?

Como vê caro João, a modernização está em curso, mas em muitos sentidos tem-se caminhado de derrota em derrota até à vitória final, caminhando por terrenos sinuosos em vez de se edificar a estrada. Se há hoje exemplos de excelência no exercício notório dos militares em algumas missões os créditos devem-se demasiadas vezes ao proverbial desenrascanço e abnegação dos militares e muito menos do que desajável ao enquadramento estruturante de um poder executivo que sabe para onde vai.

Não caro João, a vez dos militares não chegou agora, os protestos dentro da lei mas por vezes bem sonoros têm-se repetido ao longo dos anos. A desmotivação do pessoal, a sensação de algum desprezo e desnorte por parte do poder político têm feito mossa há anos a fio e a perda de benefícios decorre de forma igualmente soluçante há demasiado tempo. É à luz deste acumular de desgaste que entendo a sempre criticável e provavelmente ilegal exposição pública dos militares em passeio. É por tudo isto que não é sério este seu parágrafo apresentando "a novidade":

"(…) Com a chegada do esforço de contenção aos militares, assistimos nos últimos dias a manifestações, exposições ao PGR e, ontem, à divulgação de uma carta escrita pelo ainda chefe das forças armadas, embora aparentemente o seu conteúdo vincule as chefias dos três ramos. (…)"

Como o CEMGFA escreveu na missiva que chegou à imprensa, há menos de um ano que aspectos fundamentais para as carreiras dos militares foram substancialmente alterados como sejam a exigência cumulativa de tempo de serviço e idade para estes acederem à reforma (levando na prática a que a médio prazo a reforma se generalize apenas aos 60 anos), as progressões automáticas, o congelamento do tempo de contagem para efeitos de progressão e reforma e a redução de direitos ao nível de prestação de cuidados de saúde a familiares. O que se prevê (previa?) neste orçamento ia mais longe, harmonizava, em muitos sentidos, recusava assumir a existência de diferenças substanciais entre a condição militar e a de qualquer outro funcionário público. Quando o CEMGFA reclama «uma "simbiose indissociável" entre direitos e deveres» que julga indefensável, não entendo que o faça «como se isso não fosse assim em qualquer outra profissão», mas antes como isso não estando a ser assim com os militares. Seria interessante ir aliás um pouco mais fundo do que vai o CEMGFA, talvez por pudor, na identificação dessas especificidades que não se restringem à limitação de direitos liberdades e garantias constitucionais, mas que passam pelos próprios direitos e deveres profissionais não exigíveis a qualquer outros funcionário público, tantas vezes convenientemente menorizados. Recordo por exemplo, o dever de prontidão total, a não remuneração de horas extraordinárias, a inexistência de limitações legais ao número de horas de trabalho semanais e naturalmente ao risco de vida latente (e variável com o enquadramento político-militar do país). Onde, na condição militar estarão, no futuro previstas as compensações para estas especificidades dos militares? Quais serão esses benefícios? Poderão eles ser apenas atribuídos aos contratados como forma de aliciamento que garanta  recursos humanos mínimos para o cumprimentos das missões das FA sem que sejam igualmente oferecidos aos profissionalizados quadros permanentes?

Sim caro João, os militares juntam-se a outros reclamando a sua especificidade, cabe-nos a nós e ao Estado ir além do julgamento sumário e, em cada caso, apreciar e decidir como distribuir os escassos recursos disponíveis, sendo certo que ter FA sai caro e que há um limiar abaixo do qual a decisão racional e patriótica poderá ser o de extinguir as ditas Forças Armadas pois a ser assim, estas serão claramente um bibelot sempre demasiado dispendioso para Inglês ver.

Quanto as seus dois últimos parágrafos do Editorial de ontem:

"(…) E estranha-se a insensatez de passar a papel reivindicações de carácter parassindical, entremeadas de veladas referências à instabilidade nos quartéis, permitindo que a divulgação desta carta se associe à irresponsabilidade das associações do sector que já falam na perda de controlo da situação.

Provavelmente, não é pela via do corte de regalias que a instituição militar está em risco de ver minados os seus "fundamentos éticos" e o seu prestígio."

Espanta-me um certo desplante, que já aqui foquei ontem perante a indignação de Vital Moreira referindo-se ao pronunciamento do CEMGFA. Não tenho a ingenuidade de tomar por adquirido que a fuga da carta tenha partido do CEMGFA (nem o cenário inverso) e, confesso, para o que o João sugere tal acaba por ser pouco relevante. O que critica é ter havido uma exposição escrita, seguramente resultando como síntese da reunião havida entre as chefias militares. Não faço a mínima ideia como é o relacionamento pessoal entre o CEMGFA e o actual ministro, mas consigo imaginar situações onde é preferível eu comunicar por escrito com o meu chefe, ainda que tenha com ele um diálogo frequente, nomeadamente para minha defesa pessoal, do meu brio profissional e mesmo para facilitar sem ruído a comunicação a outrem daquilo que quero dizer (por exemplo ao Primeiro Ministro). Perante a fuga de informação o CEMGFA pecou pois patrocinou-a ao ter escrito em vez de falado? Será isso? Este é um argumento que não entendo e que dá para, mais uma vez, questionar a seriedade e o esforço de imparcialidade que acho exigível quando se escreve opinião num editorial de jornal. Enfim, fica com a opinião deste leitor que o estima e lhe estima a opinião.

Finalmente a última frase que serve corolário ao que acabei de dizer. Concordaria consigo se estivesse a insinuar que já é tempo de termos um política defesa coerente, consistente e duradouro à falta da qual se colocam em risco  os fundamentos éticos e o prestígio da instituição militar e do país, mas parece-me que exige ao militares que, em qualquer condição, se mantenham no seu posto aguentando com todos os desvarios e ilegalidades sobre eles lançadas pelo poder político. Tenho para mim no entanto que há um limite a partir do qual esse respeito deixa de ser um bom serviço à nação. E longe que estamos de levantamentos militares a reacção "corporativa" dos militares só será perigosa se nos limitarmos a toma-la como mais uma peça do folclore de vacas magras. Perigosa porque estaremos correndo o risco (talvez o risco mais presente e mais gravoso que este governo enfrenta com as reformas que tem de encetar) a deitar fora o menino com a água do banho.

Um abraço,

Rui Cerdeira Branco

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