O agora ex-ministro das finanças há dez meses:

Recupero um posto do desaparecido Pula Pulga onde se reproduzia um outro artigo do agora ex-ministro da finanças Luís Campos e Cunha.

«Sete medidas para um programa de esquerda»*

«Estas sete propostas, naturalmente, não pretendem constituir um programa de governo, mas no seu conjunto teriam maior impacto no nosso futuro que muitos programas a que temos sido sujeitos. A maioria das medidas são, mais ou menos, conhecidas e até têm sido levadas a cabo nalguns países europeus. O que este texto tem de novo é a defesa articulada de medidas que poderiam ser o sal num programa de esquerda para mudar o país. Obviamente, cada uma delas teria que ser devidamente enquadrada num conjunto mais vasto.

1. Acabar com o sigilo fiscal (a par de uma declaração de riqueza) constitui a minha primeira proposta, seguindo, aliás, a prática dos países escandinavos. O acesso geral aos rendimentos brutos de cada um seria uma forma muito eficaz de controlo pelos cidadãos da evasão fiscal. Este combate terá sempre um impacto pequeno na consolidação orçamental, mas por razões de moralidade e equidade é absolutamente necessário prosseguir essa luta. Acabar com o sigilo bancário é menos eficaz e teria efeitos muito negativos no sistema de pagamentos a retalho, actualmente um dos mais eficientes do mundo, com os correspondentes custos para o consumidor. Não deixa de ser exemplar o que se passou na vizinha Espanha, em que o fim do sigilo bancário para efeitos fiscais levou ao surgimento de ‘gangs’ especialistas em extorsão (pelas contas bancárias fica-se a saber a vidinha de cada um…) e de acordo com os ‘rankings’ mundiais a Espanha continua a ter níveis de corrupção semelhantes a Portugal. Note-se que o sigilo bancário para efeitos fiscais já foi muito suavizado no segundo governo socialista e, naturalmente, não existe para crimes graves como tráfico de droga, prostituição, lavagem de dinheiro…

2. A segunda medida proposta também teria impacto fundamental na moralização da vida pública portuguesa: alterar a lei da droga. A droga deveria ser distribuída gratuitamente por receita médica, acabando, assim, com a possibilidade de realização de lucros ao maior negócio provavelmente existente em Portugal. O marketing dos traficantes deixaria de existir, “dealers” deixariam de ter interesse em seduzir os nossos filhos, a sociedade e as instituições seriam menos corrompidas e todos estaríamos mais seguros. Neste aspecto o exemplo dos suíços – também eles são um pequeno país – deveria ser tomado como referência.

3. Na área partidária é fundamental acabar com o financiamento privado dos partidos. Esta terceira proposta de financiamento exclusivamente público, que há muito vem sendo falada, permitiria isolar os partidos de compromissos pouco claros e de conflitos de interesses a que estão sujeitos, ficando mais imunes a “lobbies” ilegítimos, quando não mesmo ilegais.

4. Mas é também necessário atrair mais e melhores pessoas para a actividade política. Há dias, por mero acaso, revi a lista dos deputados-constituintes de 1975-76. De facto, estava lá o melhor que o país tinha e, comparativamente, a situação actual é triste e paupérrima, pese embora o empenho de algumas andorinhas em fazerem a Primavera… Sugiro, assim, como quarta proposta, que o vencimento das pessoas em cargos públicos seja (apenas como exemplo) 50 por cento acima da média dos rendimentos do trabalho declarados em IRS nos 3 anos anteriores a tomar posse! Em cargos estritamente políticos é necessário remunerar a função, mas também a pessoa. Desta forma afastar-se-iam da política os menos honestos e poderíamos contar com pessoas mais qualificadas. O impacto na despesa pública seria mais que compensado pelos resultados na qualidade e transparência da governação do país.

5. Noutra área bem diferente, pelo menos aparentemente, seria fundamental acabar com a dependência do financiamento das câmaras em relação a novos projectos urbanísticos. Esta quinta proposta, seria essencial para acabar com a construção indiscriminada, em prejuízo da indústria do turismo de qualidade, da preservação do património arquitectónico e arruinando o ordenamento do território, já para não referir as mais que indesejáveis dependências (de partidos e câmaras) face a empresas de construção civil.

6. Simultaneamente, sexta proposta, seria levantado um imposto sobre a terra: meio cêntimo por metro quadrado, por exemplo. Este imposto seria muito fácil de cobrar e não prejudicaria os mais pobres, o que não deixa de ser muito interessante, pois a teoria económica ensina que os “melhores” impostos são também em geral socialmente injustos. Este caso é a excepção. Mas os efeitos secundários do imposto sobre a terra seriam muito mais importantes. As terras improdutivas seriam postas no mercado, naturalmente os preços cairiam o que beneficiaria o investimento no sector primário. O emparcelamento surgiria sem imposição estatal, o abandono das terras seria penalizado, a dita desertificação seria contrariada… e até os fogos de Verão teriam mais dificuldade em se propagar…

7. Por último, não posso deixar de referir uma medida que me é particularmente cara e que defendo há anos e anos: introduzir o inglês na pré-primária. Já que outra linguagem ninguém ouve, saliente-se que esta é a forma mais barata para o Estado de ensinar inglês. Mas muito mais importante, alteraria a prazo a especialização e as vantagens competitivas na localização da actividade económica, factor essencial no mundo globalizado de mobilidade de capitais. Há muito que se refere uma banalidade: “o modelo português de desenvolvimento está esgotado”! Mas a generalização, desde a pré-primária, do ensino do inglês faria mais pelo desenvolvimento que as dezenas de “pedipes” levadas a cabo nos últimos 20 anos! E mais barato, mais uma vez…

Um velho professor meu avisou-me um dia que nunca se põe mais de uma ideia num artigo. Eu ousei falar em sete, mas com a consciência de que cada uma delas merecia um artigo, em especial o problema do sigilo fiscal como contraponto ao sigilo bancário, a alteração das leis da droga e o imposto sobre a terra.

Mais ainda, a lista é manifestamente incompleta. Por exemplo, apenas para falar do ensino superior necessitaria de vários artigos.

No entanto, com estas sete medidas teríamos a prazo, mais ou menos curto, políticos, partidos e um Estado mais fortes e independentes para enfrentarem os grandes “lobbies” e as forças corporativas mais imobilistas. E elas são muitas, desde logo o poder económico, mas também os professores (incluindo os universitários), os juízes, os médicos, os jornalistas…

Um aviso importante: defendendo estas medidas, perder as eleições poderá ser uma honra, mas é também muito provável!»
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* Luís Campos e Cunha, Público, 5 de Setembro de 2004

Salvou-se o inglês na pré-primária, a sétima medida… e talvez a primeira.

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