Estação de Queluz, quarta-feira, dentro do comboio, no sentido Lisboa-Sintra.
Um rapaz entre os 18 e os 20 e poucos sustenta-se. Basta um breve olhar, para se perceber o espantoso estado em que ele se tem: de pé, pálpebras a meia haste, uma ausência total, completamente banhado em suor. Quando o comboio finalmente pára, dirige-se ao indivíduo, alguns anos mais velho, que se sentara a meu lado. Diz-lhe:
– Já há seis horas que devia ter tomado o antibiótico para o braço.
– Tu és assim! Responde-lhe, enquanto escorropicha o canudo de cartão de um gelado que devorara. E acrescenta: Nunca tens cuidado contigo! Dizendo isto, oferece à cabeça de um transeunte da estação o invólucro amachucado do calipo de limão.
– Merda! Olhe, desculpe! Berra, assomando-se à janela e obrigando-me a pose de contorcionista para não ser pisado. Pouco depois, reparo que me caiu sobre os joelhos um minúsculo pacotinho de plástico com um pó branco que acaba por escorregar para o chão.

Não se apercebeu.
– Já há seis horas, pá. Só tenho mais dois antibióticos.
– Amanhã, vamos ao médico para ele te passar outra receita.
O comboio estava apinhado de gente. Entre os dois interlocutores, ia um senhor na casa dos quarenta, vermelhão, de fisionomia escandinava, mas baixo, atarracado mesmo, muito bem nutrido. Piscava os olhos a uma velocidade incrível e mostrava-se nervoso, desconfortável e impotente para se afastar. Ora espreitava sobre o ombro, vislumbrando de relance o “doenteâ€?, ora olhava, a custo, para os sapatos, tentando observar, pelo canto do olho, as expressões e reacções do indivíduo do gelado que quase carregava ao colo a sua avantajada barriga.
– Desculpe, este saquinho cai-lhe do bolso do casaco…
O meu parceiro de banco olha-me inexpressivo durante breves instantes, fixa a minha mala de pele que trazia entre as pernas, cheia de livros, e leva a mão à boca como que a limpar algum bigode de açucar que ali tivesse ficado. Depois, pega no dito saquinho e sorri muito suavemente enquanto o enterra algures num bolso das calças.
O passageiro entalado suava agora abundantemente e ia fazendo diversas caretas, principalmente quando o “doenteâ€? se apoiava completamente nele, o que acontecia sempre que o comboio fazia alguma curva mais apertada. Chegados a Massamá lá conseguiu furar pela sardinhada e saiu do comboio. Ainda o vi a limpar a testa a um lenço, protegendo-se à sombra dum abrigo, dando todo o ar de que iria esperar pelo próximo comboio que o levaria necessariamente ao mesmo sítio que este agora abandonado. Creiam que não invento tudo isto, já conhecia a figura, mora no Cacém.
Várias pessoas haviam testemunhado as ocorrências e fitavam alternadamente o “doenteâ€?, o amigo e a minha pessoa esperando desenvolvimentos, talvez. Mau estar. Apercebo-me de uma tensão, um silêncio pesado. O comboio havia reiniciado a marcha, mas o ambiente manteve-se e, precisamente quando o meu parceiro de banco se preparava para fazer qualquer coisa, o “doenteâ€? desmaia provocando grande agitação. O amigo salta para o meio da carruagem, ampara-o e, às coteveladas, dirige-se à porta mais próxima. Em tom moderado diz ao ainda inconsciente:
– Parece-me que está a precisar de cuidados intensivos, meu merdas.
Puxa a alavanca de travagem de emergência do comboio, que circulava, então, a baixa velocidade (aproximando-se do Cacém), sai do comboio e carrega com o amigo às costas desaparecendo rapidamente por uma ribanceira íngreme e arborizada que ladeava a linha. Segui-se o falatório:
– Era só o que faltava!
– Agarrem-no!
– Então e se o ajudassem? O outro vai mal…
– Ajudar camelos deste? Vá lá você!
– Se fosse com o seu filho…
– Filhos da puta! Onde é que anda a PSP?
– Na semana passada foi alguém que se atirou à linha, hoje sai-me esta. E primeiro que ponham esta porcaria a andar? A senhora nem imagina!
– Onde é que o gajo se enfiou?
– E outra vez à quarta-feira!
– Quem é que joga hoje?
– Jogava! Meu amigo, jogava!
– Aquele que desmaiou era pedinte na linha de Cascais. É primo do perneta aqui do Cacém.
– Aquele do pé torto?
– Não. Aquele das moletas. O que apanha taxi em Campolide para ir p’r’ó Casal Ventoso.
– “Senhores passageiros, devido a problema técnico inultarpa… intrapa..inulprata… Por causa de uma avaria, têm que abandonar a composição! Obrigado!â€?
– Olhem, lá andam eles! Ali no IC 19. O que desmaiou ainda está estendido no chão!
– E o outro está a ver se convence algum carro a parar.
– É uma tristeza.

No IC 19 um carro encosta finalmente:
– Podia chamar uma ambulância. É o meu irmão…acho que morreu. Está ali deitado. Tomou um antibiótico marado. Muito obrigado.

Rui M. C. Branco
20 anos, est. Económicas, M. Martins

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Escrito há 8 anos, ligeiramente retocado.
Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

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