Ele era a figura da aldeia. Se tivessem de escolher um autóctone para se sentar numa cadeira de verga, bem à  sombra da placa toponí­mica, certamente escolhê-lo-iam a ele, ao Ti Jaquim o «Pechêgo».
Estatura média, ligeiramente curvado pelos seus mais de 80 anos, olhava por detrás de uns óculos quadrangulares, largos, que escondiam, ao mais desatento, uns olhos pequeninos sempre muito brilhantes. Nunca abandonava o seu chapéu castanho nem a boa disposição, e se o fizesse, por um dia que fosse, o assunto chegaria seguramente ao café, bem como à s conversas de serão. Aliás, a última vez que o recordavam triste remontava já ao falecimento de sua esposa quando tinha então os seus setenta e picos.

Era o velhote mais rijo e alegre daquelas ruas, afinal, quem lhe desse a salvação habituara-se já a levar um sorriso nos lábios, fruto duma chalaça sempre pronta. A sua adega era de longe a mais frequentada e todos lhe gabavam o bom vinho e restante hospitalidade. Dizem-me que, desde que montou a adega, não houve um único dia em que esta não acolhesse convidados e era mesmo uma espécie de ponto de romagem obrigatório a todos os visitantes da aldeia de Benquerença. Tudo lhe parecia dar um ar bonacheirão. Das suas faces permanentemente rosadas veio-lhe a alcunha; dizia-se que não havia sobre a Terra coisa mais parecida com um pêssego que as maçãs do rosto das gentes da sua famí­lia.

O Ti Jaquim «Pechêgo» era um caminhante. Adorava passear e fê-lo todos os dias, desde que se lembrava. Conhecia palmo a palmo todas as terras do vale e de todas parecia conhecer “uma parteâ€?, fosse a tragédia de uma disputa por uma certa courela, o segredo de tesouros enterrados durante as invasões francesas em determinado covão, ou os dizeres sobre paixões proibidas que fizeram história, nesta ou naquela choça, bem perto de um qualquer bardo desocupado. Ao longo de oito décadas de casamentos, festejos, provações e mortes a cruzarem vidas por aquelas terras, juntara, nas sua memória, toda a história da aldeia e de boa parte do vale

Imaginem-se agora a seu lado, num dos longos passeios primaveris que fazia pelos caminhos e quelhas do vale, em redor da ribeira, ou então, sob a sombra do arvoredo nos arrabaldes da serra, entre a água de fontes e regatos. Ou ainda, sob o alpendre de cantaria bem à porta da fresca loja de sua casa, durante uma escaldante tarde de verão.
Fiquemo-nos pelo último cenário para apreciarmos uma das artes onde melhor se revelava a sua mestria. Imaginem-se a ouvir algumas das suas longas narrativas…

Sobre um cepo, que já fora, por ventura, encosto para muitas desmanchaduras do porco e para muitos rachões, oferecer-nos-ia um copo de vinho beirão ou de água serrana, ambos bem frescos pelas bilhas de barro. A acompanhar: um naco de pão com queijo ou um apetitoso chouriço caseiro.
Ah! Mas a história! A arte de a contar! Mil vezes a repetisse outras tantas vezes nos deleitaríamos. Primeiro a sugestão. Vinha no meio da conversa sempre a propósito e quase sempre sem nos apercebermos. Quando dávamos por ela, estávamos a esforçar o ouvido para não perdermos pitada. Seguia-se um minucioso enquadramento de toda a acção. Umas histórias passavam-se durante a época das bandeiras negras (a fome), outras quando o padre �lvaro ainda era o pároco da aldeia, mas também as havia da altura em que os filhos da Ti Marques foram apanhados pelos carabineiros com os sacos do minério às costas! Depois, a surpresa era total. Poderíamos ter uma história do anedotário da aldeia, onde não raras vezes dominavam as falas inevitavelmente hilariantes dos intervenientes; poderíamos ter um conto fantástico sobre a origem do nome de um qualquer lugar do vale, como o Terreiro das Bruxas ou o Cú do Lobo; poderíamos ouvir a história da tragédia de uma paixão arrebatadora que percorreu séculos na oralidade da aldeia. Enfim, podíamos esperar qualquer aventura e experimentar as inúmeras sensações que se desencantam e insinuam num conto.
Mas o que fica mais marcado na memória, é todo o ritual que o Ti Jaquim seguia e toda a magia e encanto que fazia desprender de cada passagem duma história. A cada vez que usasse o canivete para cortar um pedaço de chouriço ou parasse para beber um trago de vinho, quase recomeçava a história do início. Seria isso consequência da idade ou matreirice de quem se sabendo com um público que lhe bebia as palavras, aproveitava para prolongar o seu momento de glória, acrescentando aqui e ali um pormenor de que se “esqueceraâ€?? Não sei bem, mas sei que fazer uma pergunta tinha invariavelmente o efeito de beber um trago de vinho ou de cortar um naco de chouriço, e sei também que bastas vezes havia quem o interpelasse, saborosamente.

O Ti Jaquim «Pechêgo» já morreu e fê-lo de surpresa, sem dizer a ninguém o que fazer às suas histórias. Um dia devo ter-lhe perguntado se as criava ou se alguém lhas contara e ele ter-me-á dito, com um sorriso largo e encolhendo os ombros, que simplesmente lhe vinham à memória. Provavelmente, algumas contara-lhas o seu pai, outras os seus irmãos, os seus amigos e outras contara-lhas a vida. Mas como vêem não vos posso dar o número da sua porta nem sequer o nome da sua rua, garanto-vos, contudo, que ele ainda por aí anda a contar histórias e a lançar chalaças certeiras a quem lhe dá a salvação numa qualquer rua deste país. «Bom dia, Ti Jaquim! Que tal vão esses ossos?»

……………..
O «Pechêgo» é uma personagem, mas é, acima de tudo, o meu bisavô, recordo-o aqui como contador de histórias e como um dos “velhotesâ€? mais populares de uma aldeia. Para mim, é gente com história e com histórias, que está a morrer todos os dias por esse país fora, ainda à espera de ser “entrevistadoâ€?. (É mais um proto-blog enviado para o DNJ em 1995)

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