Era sempre a mesma coisa! O João abria um livro e, logo nas primeiras linhas, lá estava escarrapachada uma das ideias que tinha como parte do seu mais íntimo património, obra de sua suprema singularidade. E, invariavelmente, o livro ia parar à gaveta da mesinha de cabeceira, condenado. Que diabo! Seria isto um truque da sua mente? Estariam já todas as ideias escritas num livro? Porque teimavam em parecer sempre mais belas e perfeitas? E porque lhe passava constantemente pelo pensamento aquele quadrado da Mafaldinha, onde se dizia que criar não era mais do que imitar com antecedência?

O pior é que, a cada experiência destas, surgia mais forte a convicção de que o próprio problema enfrentado não poderia ser algo de novo. A originalidade é uma utopia logo, não vale a pena pensar porque é virtualmente impossível criar. Caso arrumado, segue a vida! Não segue não senhor. O João tinha que resolver o assunto de uma vez por todas, afinal, no seu código não havia prisões perpétuas e, de certeza, incorreria novamente no hábito da leitura.

Abriu a gaveta e o livro do momento,“Os Maisâ€? de Eça de Queiroz, capítulo tantos da página tal, cá estava: Ega resolvera escrever as «Memórias de Um Ã?tomo». Ora, um fulano que nascera há aproximadamente 150 anos, aliás, há precisamente 150 anos, retirou o brilho da originalidade a uma ideia que o João tivera há uns meses atrás! Quem era esse Eça de Queiroz para agora, com o peso dos seus anos e com a sua antecessora existência, vir condicionar os que se lhe seguiram, ao ponto de lhes retirar a legitimidade de se apregoarem criadores de uma ideia, pais de um pensamento, que efectivamente era tanto de sua exclusiva autoria como foram os de Eça em seu tempo?
Mas que “culpaâ€? tem Eça? Certamente, também não terá menores direitos.
A culpa não é de ninguém! Queimem-se os livros, escrevam-se outros para a fogueira! Não, isso também não. Se a escrita fosse uma colecção de ideias finítas essa nunca seria uma solução; não haveria solução. A escrita deve ser algo mais – desconfiou o João.
Após estas reflexões não se sentia nem melhor nem pior, uma mistura de revolta e angústia dominavam-no. Resolveu então partir do princípio que só conseguira aflorar a ponta de um iceberg, uma vez que era essa a sua sensação mais frequente no dia a dia. Geralmente, tudo o pensamento ou reflexão que produzisse empurravam-o para um mundo extremamente complicado e cheio de relativismos movediços, potencialmente agonizantes. Assim, tomou este como um desses casos frequentes e resolveu abordá-lo de uma forma diferente: ia escrever.
O desespero foi instantâneo. Ainda antes de escrever imaginou-se já a combater o ridículo da repetição, da frase feita, do pensamento estafado ou completamente previsível. Em torrente e meio desvairado debitou para o papel: «Mas eu só nasci quando nasci; estou limitado aos meus conhecimentos. Afinal, o meu tempo só conta com o passado dos outros quando faço dele presente. Não lhes devo direitos de autor; devo-lhes respeito e estudo. Mas devo-me o esforço de pensar pela primeira vez a ideia nova, ainda que no tempo dos homens seja já antiga e tradicional». Parou um pouco e releu-se. Continuou: «Também já não estou na fase do “contraâ€?, já faço compromissos. Tento manter um ritmo assente na espontaneidade e na naturalidade, sempre combatendo as poses que insisto em fazer e em aturar. Cada um tem que descobrir o seu estilo, a sua personalidade, mas sempre sem abusar dos ídolos, das comparações, das oposições e de todo o tipo de reacções mecânicas. É algures no meio desta filosofia que tenho de encontrar o meu meio de navegação mais racional, pois que não raras vezes me é apenas possível navegar com recursos mais primários, ainda que ocasionalmente mais inesperados e desconhecidos». João voltou a parar, olhou para o livro e rematou: «Qual é o melhor caminho para se aprender a ler? Lendo?!»
Ficou ali um pouco, sentado na cama, a olhar para o papel. De seguida, ergueu ligeiramente a cabeça e olhou-se no espelho, viu o livro ao seu lado e quiz agarrá-lo com a mão direita. Dissimulado, este fugiu-lhe aproveitando a traição do espelho. João sorriu. Com uma sensação de rendição, enfiou-se debaixo dos cobertores e sonhou Lisboa, e depois Sintra, tal como Eça lhe sussurrara pelas páginas de um livro aberto.

Aos 10 de Outubro de 1995
(publicado no DN-Jovem em Novembro de 1995)

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