Mais uma do baú
Memórias de um Proto-Blogue V

Crónicas Rapidinhas sobre Tansos:
André e a Secular Rede da Boa Vontade

Chamemos-lhe André. André é um rapaz a rondar os 20 anos, tem uma cara juvenil e uma capacidade de representação razoável. Este rapaz apresenta aos passageiros da linha de Sintra, na estação do Rossio, uma variante interessante do pedinte de comboio. A sua imagem é completamente oposta à do pedinte clássico que ainda vai resistindo: o indivíduo chungoso e fedorento, de baixa estatura e envergadura diminuida pela dependência e pela imunodeficiência adquirida, que vai tentando vender pensos rápidos a 100 paus a dúzia.
O André não é mal parecido, é asseado, anda sempre bem vestido – de pólo ou T-shirt com boas calças de ganga e tenis a condizer ou então de fato cinzento – e faz-se acompanhar de uma pequena pasta portfólio que completa a figura de indefeso estudante do secundário ou universitário.
Composto o boneco, o André lança a linha com um dizer relativamente comum mas ainda não saturado nestas andanças das carroagens de comboio: «A senhora [alvos preferências entre potenciais mães ou pais de adolescentes] não me podia dar qualquer coisa para acabar de pagar o bilhete? É que perdi o passe e estou desprevenido… Só tenho 100 escudos….»

Nos primeiros tempos, o sucesso do esquema é razoável, pois o boneco está bem feitinho e é bem diferente da tal imagem preconcebida a que as pessoas reagem com uma automática recusa.
Quando o André me interpelou pela primeira vez, confesso que fiquei espantado com a sofisticação e demorei mais um segundo do que devia para responder negativamente ao pedido.
Poucos dias depois, volto a encontrar o André no Rossio com outra roupa e outra pasta, mas com o mesmo boneco e esquema. Quase lhe bati palmas: a representação melhorava de dia para dia! No entanto, quando me interpelou novamente, brindei-o com o silêncio e um olhar imperturbável bem fixo na cara dele o que me valeu, desde então, ser poupado a futuras exibições personalizadas.
Hoje, passados alguns meses após o primeiro encontro, tornei a ver o André no comboio (vem lá ao fundo da carroagem, neste momento) ainda com a mesma ladainha e esquema. A avaliar pelas contribuições, o negócio já teve melhores dias, quase só sobram as senhoras de bom coração que não têm ido corrigir as dioptrias ultimamente, mesmo assim, ainda vai rendendo qualquer coisa, não é André? O tipo ainda me conhece! Passou por mim agora mesmo, poupando latim.
É preciso ter lata, mas mais importante do que isso é preciso ter dinheiro. André tem conseguido doses bem aviadas de tudo isto e tem ainda o filão da linha de Cascais para explorar (qualquer dia terá também a do Pinhal Novo). Desejo-lhe boa memória para me continuar a reconhecer e desejo-me a fortuna de nunca precisar de recorrer à generosidade alheia em região já batida e chupada pelo André; já agora, desejo o mesmo para vocês.

*

Hoje, ao início da tarde – alguns dias depois do anterior «hoje» que vem ali mais acima -, voltei a ver o André na estação do Rossio. Estava no grande átrio onde se vendem jornais, bilhetes e pipocas.
A indumentária era a do esquema e tudo indicava que ia começar mais um dia de trabalho, mas havia uma novidade, uma novidade para mim, não para a verdadeira história quotidiana da linha: com o André estavam mais dois Andrés. Um talvez fosse o António: “vestiaâ€? a sua pastinha de apontamentos que trazia na mão esquerda juntamente com o caderno escolar que encostava à T-Shirt da moda. O outro, mais velho, parecia coordenar as tarefas do dia distribuindo direcções e instruções para os Andrés. Este outro parecia menos universitário, mas também não tive tempo para o topar em condições. Num instante se separaram em direcção às várias linhas da gare do Rossio. A rede da boa vontade voltava a atacar os generosos e indefesos cidadãos suburbanos.
Hoje é terça feira, dia de feira da ladra, há pombos, fumo, enganos, rugas e olheiras. Parece Inverno este Verão. Acho que não devia, mas tenho nojo de alguma coisa.

Mem Martins, 24 de Julho de 1997

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