Chegou tarde, cansada mas sorridente. O trabalho no escritório decorreu sem notícia de destaque além da tardia hora de saída. Aproxima-se o tempo de todas as urgências. Ainda que poucos saibam o que fazem, tudo tem de estar pronto para recomeçar de novo no primeiro dia do ano. O dia de hoje foi um preliminar, sem história, ou quase.

A rotina foi quebrada com o patrocínio da Carris – que, para quem não sabe, é uma empresa centenária que está actualmente sobre alçada do Estado e é responsável pelos transporte colectivo rodoviário no interior da Cidade de Lisboa.
A Carris, ou melhor, parte dos seus trabalhadores, protagonizaram hoje mais uma meia greve, ou um turno de greve, custa-me precisar. Pela enésima vez este ano, os amarelo-laranjas, campeões da poluição por motor quadrado, ficaram nas garagens no início da noite. Também, devido a isto chegou tarde, cansada e particularmente… sorridente.

A companhia tem por hábito sub-contratar outras empresas para garantir algumas poucas carreiras onde o transporte público é exclusivamente assegurado pela via rodoviária e, esta modesta iniciativa, provou-se hoje, provou ela hoje, acabou por se revelar um anti-stressante inesperado.
Imaginem um condutor de autocarros de grande turismo, habituado a viagens de longo curso, onde as distâncias se contam às centenas e a velocidade às dezenas de quilómetros, a percorrer as ruas de Lisboa à caça de paragens cor de laranja num itinerário que mal conhece…

A cada mupi mais alaranjado que encontrava na beira do caminho lá estava o condutor a fazer pisca para a direita em sinal de “vou encostarâ€?. Noutras ocasiões, as paragens estavam tão disfarçadas que não havia outro remédio senão deixar os passageiros pasmados e ligeiramente indignados no semáforo avermelhado mais próximo… Mas a história não se fica por aqui.

Era tarde, estava cansada e pouco animada. Começou a simpatizar com o condutor e a gostar da gincana invulgar.
Desprevenidas, duas turistas francesas entraram no autocarro, mostraram o bilhete diário e sentaram-se conversando animadamente. Ficaram neste descanso por pouco tempo. Passados alguns instantes, o extraordinário motorista meteu conversa com a dupla, em bom francês. A coisa podia ter dado para o torto, mas não! As senhoras deliraram por encontrar um chauffer francófono. E patati, patatá, ficaram a saber das andanças e paranças do motorista internacional. Até se souberam vizinhas da comadre Joaquina no 12º bairro de Paris-não-sei-a-ver-o-quê.
Não contentes com tamanhas descobertas, ao fim de mais alguns minutos, convertiam a viagem banal, rotineira, amorfa, num autocarro alugado pela Carris, numa autêntica excursão em espírito carpe diem. Puseram quase toda a gente no autocarro a cantarolar as musicas da rádio que entretanto subira de tom.

Para compor ainda mais o cenário desta crónica, é preciso frisar, que, a cada paragem falhada, a cada novo abrir de portas, os pacientes candidatos a passageiros ouviam as cantilenas e as risadas bem humoradas, bem como, a voz bonacheirona do motorista que, lá de dentro, as interpelava animada e veementemente: “Entrem, entrem que esta carreira faz quase o mesmo caminho que o 107. E esse ainda está em greve. Venham comigo até à Paiva Couceiro que de lá apanham o especial.â€?. Uns entravam outros ficavam-se com um olhar espantado e o autocarro lá seguia embalado ao som de mais uma música intemporal cantada com vigor por alguns dos passageiros e o respectivo mestre de cerimónias.

Muitas inesperadas paragens depois, tarde, cansada, ela saiu do transporte trazendo um sonoro “Boa Noiteâ€? nos ouvidos e um simpático e muito personalizado aceno de despedida no olhar. Chegou-me aqui com um sorridente “Não sabes o que me aconteceu agora. Só visto que contado ninguém acredita!â€?

Lisboa, 11 de Novembro de 2003

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