Quando se está a ler um livro por vezes outras histórias colam-se ao enredo de forma indelével. Não que o leitor entre num delírio criativo – também pode acontecer – mas porque o mundo nos entra pela leitura adentro oferecendo-nos personagens que poderiam conviver com o que se está a ler.
Aconteceu-me hoje quando viajava do Luxemburgo rumo ao Porto. Andava entretido com um inspector em investigações pelo caribe quando o paternalismo de hospedeiro de bordo (pois se elas são hospedeiras o que são eles?) pôs-me à conversa com uma passageira que vim a confirmar muito depois ser cabo-verdiana. Falando em Francês que o Português fazia pouca lei em Santo Antão há 60 anos atrás e o criolo local não é próprio para não iniciados quanto mais para rapazinhos esbranquiçados, desenrolou-se a história paralela à do livro que se quedou no banco livre que nos separava. Eu servido de pouco mais do que de ouvidos (estimulados pelo ruído de fundo) e por um francês apenas suficiente, ela servida de olhos e de uma voz tristes, ambos de quem buliu muito mundo. A senhora estava servida ainda (desconfio) do saber como compôr uma história ao gosto do ouvinte, um dom inato nos Cabo-Verdianos com que me cruzei até hoje.
Fez-se uma conversa que durou meia viagem: uma morte inesperada que ajudou à urgência do desabafo, as multiplas traições da vida e dos vivos, o dinheiro, o poder, a luxúria, a família, a saudade, o amor, Deus, a tristeza e a cozinha, sempre a cozinha feita profissão no meio da vida daquela mulher a rondar os 70.
Entre a TAP e a Portugália, no trânsito aéreo de Pedra Rubras com Lisboa em vista, perdeu-se o número de telefone e qualquer contacto futuro. Fica garantido porém, como um separador que há-de sempre acompanhar o livro em questão, a memória perene de um capítulo adicional em "Um céu demasiado azul".
Como irá de desenvolvimentos mais aquele episódio da história de Cabo-Verde, pergunto, enquanto leitor, distraído do mundo que passa rápido à velocidade de cruzeiro.