Ontem fui ver As Cartas de Iwo Jima, uma boa história e um bom filme de Clint Eastwood. Desconfio, contudo, que o filme sirva melhor um público pouco habituado a ver filmes de guerra e, consequentemente, a reflectir sobre o fenómeno. Servirá ainda melhor um público que conhece do Japão Imperial apenas os clichês dos filmes clássicos das décadas de 50 e 60… Nesse aspecto de servir o público, o filme é excelente. Garantindo à partida a identificação com a personagem universal do soldado feito à força, comum japonês especializado no fabrico do pão, Clint Eastwood inicia uma história plausível, interpretada por Japoneses – facto não despiciendo -, onde se percorrem alguns dos traços mais marcantes da cultura japonesa vertidos (e popularizados) na sua versão bélica, enquadrando-os de modo a adquirirem o sentido "verdadeiro" que raramente terão tido noutros filmes e na cultura popular em geral. A honra e o seu confronto/complemento com o fanatismo/abnegação, a brutalidade, a ambição, a arrogância, a ignorância (do outro)… Os japoneses ganham automaticamente humanidade. Bom filme, sem dúvida.
É muito provável que a díptico funcione como um todo mais rico mas houve já na história do cinema (e não é preciso recuar décadas) filmes que conseguiram mostrar-nos tudo isto de forma genérica ao ponto das partes em conflito pouco importarem para se fazer passar o retrato fiel da guerra e da multiplicidade de dramas e paradoxos que gera. Filmes que à história dual do "nós contra eles" retrataram muito melhor o soldado, a influência do desgaste físico e psicológico das tarefas rotineiras e não rotineiras rumo ao campo de batalha. Achei estranhíssimo o sublinhado da narrativa na construção de trincheiras na praia por oposição à relativa omissão do necessariamente brutal trabalho de preparação das grutas… Detalhes? Claramente não eram preocupação do realizador reduzindo esses factos (tal como a difteria) a brevíssimas anotações no enredo. A sensação com que saí do filme, contrariamente ao que tenho visto em outros filmes de Eastwood, foi uma de que a habitual economia narrativa redundou em simplismo e em superficialidade – mesmo tendo contado com bons actores.
Um bom filme, na linha dos clássicos como muitos têm dito, mas distante de The Thin Red Line (A Barreira Invisível) e de Saving Private Ryan (O Resgate do Soldado Ryan), para pegar nos exemplos que tenho mais presentes. Talvez eu seja particularmente exigente neste género. Recordo-me frequentemente de cenas e episódios de outras peças que este filme não conseguiu equiparar… Muitos anos a ver excelentes séries de guerra britânicas?
P.S.: Já agora, o mais emocionante filme (telefilme neste caso) sobre cartas de militares enviadas às suas famílias que vi foi "Dear America" (em torno da conflito no Vietnam).
6 replies on “Das cartas de Iwo Jima e outros filmes de guerra”
Ainda não vi Iwo Jima, nem sequer o Flags of our Fathers.
Em matéria de filmes de guerra, concordo com a tua apreciação e recomendo-te (se ainda não viste), Paths of Glory de Kubrick, e o dificilimo de arranjar, Idi e Smotri (vem e vê), de Elem Klimov, a operação barbarrosa, vista pelos olhos de um soviético.
O Resgate do Soldado Ryan é um belíssimo filme, mas inferior às Cartas de Iwo Jima. Eu diria que o defeito do Resgate… é parecer-se demasiado com um filme de aventura num cenário de guerra.
As Cartas…, para mim, são muito mais a guerra em si, violenta, cruel e desumana.
Filmes de guerra marcantes para a minha cultura cinéfila: Platoon e – o pai dos filmes de guerra – Apocalipse Now.
Obrigado pelas dica Ã?lvaro 🙂
Miguel: sim concordo com o defeito do Resgate mas acho que há lá cenas que o salvam e onde a parte do folclore americanado deixam de estar presentes. Não houve nenhuma cena superlativa que encontrasse nas Cartas ou melhor, nunca senti grande densidade nas personagens das Cartas. Foi essa a maior desilusão (e essa a estupefacção perante os pÃncaros em que puseram o filme – nomeadamente designando-o de filme definitivo sobre a guerra).
Qualquer um dos filmes que citas arruma as cartas a um canto em relação aos que enunciaste: a guerra violenta, cruel e desumana. Viste o Das Boot (1982 de Wolfgang Petersen?) à outro que serve muito melhor os propósitos de retratar a guerra. Opiniões 😉
Esqueci-me de Apocalipse Now, (agora na sua versão redux), um dos meus favoritos Imperdoável! Mas de qualquer maneira, será este um filme de guerra?
Nunca vi o Das Boot. Tenho de ver se o apanho, mas não me parece que seja daqueles que enchem as prateleiras dos videoclubes.
A densidade das personagens do filme do Clint Eastwwod é o seu aspecto menor, de acordo. Será, digo eu, propositado ou calhou assim? Se calhar foi o que me permitiu concentrar-me tanto no aspecto da guerra.
O Apocalispse é tão bom que, quanto a mim, não é definitivamente apenas sobre a guerra. Mas é muito sobre a guerra. E explora um conceito nem sempre abordado, e quando abordado, nem sempre bem tratado, que é a alienação completa num meio que transcende o indivíduo e o catapulta para um estado de anormalidade permanente.
Concordo plenamente. Este filme é para quem nunca pensou muito sobre a guerra… E digo mais, parece-me que é para os americanos que nunca pensaram muito no facto de que “o outro” (ou seja, o inimigo) é igual a ele.