Numa reunião internacional a que assisti em Lisboa, há alguns anos, sob os auspícios da Eclac, fiquei com a nítida impressão de que o planeta estava dividido entre duas formas de contar pobres.
De um lado tínhamos os países dito desenvolvidos que privilegiavam as medidas relativas de pobreza (como sejam a popular fasquia resultante de uma fracção da mediana/média do rendimento), países esses entre os quais se incluíam alguns que haviam, no passado recente, declarado ser zonas livres de pobreza mas que agora concediam ter de voltar a abordar o assunto.
Do outro lado da barricada, tínhamos os países onde medições relativas surgiam quase como um luxo. Entre estes, ou simplesmente não se contabilizavam os pobres (o 1 ou 2 dólares por dia calculado pelo Banco Mundial forneciam já por si uma perspectiva aterradora) ou então privilegiavam as medidas de pobreza absoluta, tipicamente definindo cabazes mínimos de subsistência (de acordo com as regiões do país – clima, oferta de bens, etc) – valorizando-os monetariamente e apurando quem teria ou não condições para os adquirir.
Em alguns países percebi que se apuravam dois tipos de cabazes ou cestas, um de indigência (tentando aproximar quem estava em risco de morrer literalmente de fome) e outro com outro nome que integrava na sua constituição um conjunto de bens e serviços considerados necessários para uma vida minimamente condigna.
No final da reunião, que veio a ter sequência nos anos seguintes (e que era já um episódio de um grupo anterior), a principal conclusão foi a da necessidade de as duas partes do mundo partilharem as respectivas metodologias. Estas revelavam-se complementares mitigando mutuamente lacunas e imperfeições como alguns exemplos já então praticados em alguns países demonstravam.
Para contar pobres (um bom pretexto para se estudar e preparar o caminho de combate à pobreza, ainda que algo limitado) é preciso considerar o nível (que pode implicar o esforço de operacionalizar conceitos como dignidade, direitos cívicos e subsistência fisiológica) e é preciso considerar aspectos relativos que ajudarão a perceber a magnitude e diversidade das pobrezas.
No final das contas, desta globalização dos conceitos, seria/será possível perceber até que ponto a pobreza que existe no mundo sub-desenvolvido também existe no 1º mundo e será possível também antecipar até que ponto problema já clássicos neste 1º mundo poderão estar em embrião noutros pontos do mundo.
Como disse no início, a pobreza é multidimensional. Será um fenómeno tendencialmente absoluto onde morrer de fome é corriqueiro mas não podemos admitir que falamos de outra coisa radicalmente diferente quando no espaço de meia geração os mesmos que estavam à beira de morrer de inanição começam a morrer de má nutrição por excesso de ingestão calórica.
A complexidade do fenómeno e a urgência que o seu melhor conhecimento e mecanismo de reprodução e perpetuação impõem em cada sociedade não são consentâneos com abordagens que operacionalizam conceitos exclusivamente pela via da contagem relativizada como parece que vamos fazendo por aqui, como sublinha o JCD, no comentário a este post: "Mini Tratado sobreo que deveriam ser banalidades".
Permitam-me uma nota final para sublinhar que vamos fazendo muito pouco quanto ao estudo macro do fenómeno neste país. E é uma pena que reuniões como a que assisti há vários anos, (então acolhida pelo INE), os estudos que se lhe seguiram nessa mesma casa e os pretextos políticos (da União Europeia) e analíticos do Eurostat, não tenham permitido que a nível de estatísticas oficiais, os dados disponíveis (que aumentaram consideravelmente em riqueza e potencialidades desde o início da corrente década) não produzam mais do que os dois indicadores relativos cujo apuramento e divulgação somos obrigados por via dos imposições comunitários ao nível dos Indicadores Estruturais.
A academia tem tido e deverá ter sempre o seu papel, mas nesta como noutras áreas, já era tempo de se assumir um dos "pacotes" metodológicos disponíveis e passar a divulgar com base regular indicadores oficiais de pobreza em Portugal.
Mais uma vez fica dito, à laia de sugestão.