Imagem estilizada de um cravo disponÃvel na página do Instituto Camões Estamos a quatro dias do 25 de Abril e continua-se a publicação das participações que vão chegando à caixa de correio do Adufe a propósito deste repto aqui deixado em finais de Março.
Hoje o contributo do Blogs-Fora-Nada. Uma imagem de 25 de Abril de quem tinha seis anos na altura. Agredeço desde já a todos os que participaram com textos e comentários contribuindo para melhorar a qualidade da memória dos 30 anos do 25 de Abril aqui pelo Adufe. Entretanto as “inscrições” mantêm-se abertas…

30 anos

Era dia de passeio, o primeiro desde que entrara para a escola primária. O farnel estava preparado do dia anterior, numa marmita de alumínio baço e tampa vermelho vinho. Bebida, laranjada colocada numa pequena garrafa vestida com um entrançado plástico vermelho e preto. A excitação era grande, demasiada para adormecer.

Nessa noite outros não dormiram, percorreram quilómetros, encomendaram-se a santos e a ideais, colocaram o destino das suas vidas nas decisões e acções tomadas, e alteraram assim também o destino de um país.

O dia amanheceu para um país diferente, mas eu não o sabia nessa altura. O dia de passeio acabou a ser dia feriado, a escola fechada, a televisão ligada o dia todo. Um vizinho de quem eu gostava como um avô, passou esse dia na sala de casa dos meus pais, sentado em frente à televisão tentando não perder nada do que estava a suceder. Ainda hoje o revejo, de samarra vestida, sentado curvado na ponta do sofá, palito sempre no canto da boca e a boina que lhe deu o cognome na cabeça.

O Boininha, como todos o conheciam, tinha feito campanha pelo Humberto Delgado e com isso conseguido ter direito a alguns problemas, que poderiam ter sido bem maiores não fosse ele tão arraia-miúda.

Existem imagens que ficam vincadas na memória, marcadas como a ferro quente em madeira frágil, mesmo que o tempo desgaste a madeira, ficam sempre marcas, cicatrizes do que existiu. Lembro-me de ver, na televisão, a abertura da prisão, os presos a saírem, recordo imagens que mais tarde confundi com outros locais, a porta da prisão e de uma garagem pública, para mim enorme, pareciam o mesmo sítio. Precisava de situar os acontecimentos nos locais que conhecia.

O passeio acabou a ter lugar algum tempo depois, e se nas cidades pequenas não se viam ainda diferenças, na estrada nacional e no Porto notavam-se os movimentos das tropas que despertavam a nossa curiosidade. Não tenho a certeza mas é provável que nunca antes eu tivesse visto um militar em seu uniforme.

Apesar da meia dúzia de anos que tinha na altura, comecei a perceber outras diferenças, não que o antes tivesse sido difícil para mim, mas porque o depois me concedia coisas que antes não existiam. Os comícios políticos, os autocolantes da propaganda partidária, as músicas que simbolizavam a revolução, os slogans gritados aos quatro ventos, algum vocabulário entretanto aprendido, as pessoas que falavam, trocavam ideias, outras que se encolhiam, tentando perceber se aquele sol era de pouca dura, se a repressão viria mais forte depois, ou se a mudança estava ali para ficar.

Auto-gestão foi uma das palavras novas que aprendi, repetida muitas vezes à medida que os empregados das têxteis da zona tomavam conta das fábricas, se organizavam em comissões e geriam a empresa por sua conta. Não sei com que resultados, era pequena demais para me aperceber de tal, mas a avaliar pela situação alguns anos depois, nenhuma delas vingou.

Muita gente vendeu, naqueles tempos que se seguiram, os seus bens, temendo as nacionalizações. Outros aproveitaram esse pânico e compraram. Lembro-me bem disso porque assim ganhamos vizinhos novos na freguesia, pessoas que vinham de fora e que se instalavam à medida que algumas das maiores casas mudavam de mãos.

A escola também foi alvo de mudanças, a separação de sexos que ainda se mantinha foi abolida, mesmo antes do final do ano lectivo. Os rapazes que costumavam espreitar por cima do muro do recreio passaram a compartilhar a nossa sala de aula e as nossas carteiras. Apenas me recordo de um, a que chamavam ratinho, tão pequenino era. Tinha o dobro da minha idade mas ainda não sabia ler e era efectivamente ladino como um rato. Dos outros praticamente nem me lembro, no ano lectivo seguinte mudei de freguesia e de escola, mudei de professores e de colegas, e todas essas recordações ficaram empoeiradas.

Passaram 30 anos, as recordações próprias que tenho do 25 de Abril de 74 quase nada têm a ver com a revolução, e contudo estão fortemente ligadas a ela. Muitas das recordações da minha infância perderam já as datas, perderam o tempo em que aconteceram, perderam o antes e o depois. 1974 continua mais definido que qualquer outro ano, lembro-me dos dias de sol desse verão, dos passeios que fazia com os meus pais como se percorrêssemos outro país, lembro-me de ter começado a descobrir outras músicas que antes estavam banidas e agora tocavam livremente na rádio. Mais do que recordações dessa altura eu tenho imagens, como se a minha mente se tivesse divertido a fotografar eventos para mais tarde recordar.

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