O nosso amigo do Jaquinzinhos brindou-nos com mais alguns parágrafos no seu texto “Conceitos” ainda sobre a questão da pobreza.
A época não está para grandes polémicas mas li por lá uma frase e um parágrafo que quero para aqui trazer. Já se sabe como é a conversa, tal como as cerejas, puxa-se por um assunto e quando se dá conta estamos a discutir os porquês do mundo:
”
Pobre é o homem cujo vizinho comprou um BMW.
Estamos no Natal e talvez esta seja a altura ideal para olhar para este mundo e perceber porque é que os paÃses ocidentais, com economias mais livres, criaram sociedades em que as privações dos seus cidadãos se reduziram a nÃveis residuais, enquanto muitos outros paÃses que abraçaram outras teorias deixaram os seus povos em nÃveis de subsistência e desenvolvimento insuportáveis.”
in Jaquizinhos
Na minha modesta opinião o seu Jaquim conseguiu exceder-se. Ã? parte a tirada do residualismo da pobreza nas economias mais livres – Como mede o nosso Jaquinzinhos a pobreza e de que pobreza fala? â já sabemos que não é a relativa; A partir de quanto é residual? Qual o perÃodo histórico com que compara a dimensão actual da pobreza nas sociedades ocidentais? Qual a evolução da pobreza de que fala o Jaquinzinhos numa perspectiva cronológica recente, digamos, os últimos 100 anos no seio das sociedade ocidentais? – fico então a saber que nós, “as economias mais livres”, não tivemos absolutamente nada a ver com o passado e as suas consequências sobre a actualidade da realidade económica e social dos povos que hoje enfrentam problemas graves para assegurar o desenvolvimento dos seus paÃses. Digo isto porque, num passe de magia, toda a responsabilidade da pobreza (dos ânÃveis de subsistência e desenvolvimento insuportáveisâ?) que grassa por bem mais de meio mundo é culpa exclusiva do “abraço a outras teorias” que não a neo-liberal…
Eu confesso que nem sabia quão abrangente havia sido a prática desse tipo de abraços teóricos nos paÃses onde a pobreza se conta maioritariamente pelo risco da indigência e inanição total. Mas o Jaquinzinhos descobriu numa penada o culpado e a cura resumindo-se esta última numa palavra: liberalizem!
à irónico que este seja o grito que alguns dos paÃses que tentam sair da pobreza e possuem alguma inteligência entre as suas escassas elites lançam aos ouvidos das “economias mais livres”.
Pelo que vou conhecendo estou convencido que o nosso modelo económico actual, o das âeconomias mais livresâ?, é demasiadas vezes um importante factor restritivo das possibilidade de recuperação de povos que tenham caÃdo no pecado de “abraçar outras teorias”.
Muito do que somos e temos hoje foi construÃdo e é construÃdo à s custas do outro, do que é hoje pobre. Para cada exemplo de sucesso recente (sucessos “liberais” francamente duvidosos em muitos casos por pactuarem ou se basearem num funcionamento de mercado de trabalho pleno de atrocidades e comportamentos repugnantes para o nosso entendimento de Homem) encontramos muitos outros onde pelo comportamento distinto das potências mundiais e/ou da história particular do Estado se agravou o fosso entre os mundos agravando-se também o problema da pobreza.
O modelo que tanto prezamos é cego e não necessariamente adequado à s concepções de justiça exigidas pelo ser humano no relacionamento com o seu semelhante. Além disso, o modelo e os agente que o praticam possui uma muito conveniente e concorrida âporta da traiçãoâ?: as âeconomias mais livresâ? e os principais arautos do modelo, quando na posse do poder polÃtico e económico, estão longe de seguir os seus tão propalados dogmas. Crendo que não está em causa a democracia como veÃculo adequado à implementação do modelo neo-liberal, nem os princÃpios básicos subscritos na Carta Universal dos Direitos Humanos, só pelo implÃcito receio de um desmoronamento (de alguns sectores?) das economias mais livres se compreende:
– o proteccionismo das economias mais livres em sectores onde estas são menos concorrenciais a nÃvel internacional;
– a incapacidade de concretizar promessas de colaboração e compromisso com sociedades em vias de desenvolvimento disponÃveis à mudança;
– o veneno que são algumas das ajudas caridosas que as ricas âeconomias mais livresâ? têm lançado cirurgicamente aos famintos pobres [podemos discutir por exemplo a questão da “inundação”, perdão, doação de carne de vaca potencialmente infectada com BSE e/ou febre aftosa â carne que ninguém por cá queria – de que foram “felizes” beneficiários alguns paÃses, onde finalmente o mercado mais livre da carne começava a dar os primeiros passos, lembro-me da Rússia…].
As teorias tem destas coisas, da boca dos seus mais distintos defensores e implementadores surgem as aparentemente mais incoerentes medidas que no fundo nada mais traduzem do que a capacidade e disponibilidade permanente para o discricionarismo. Um discricionarismo que é nefasto por não ser assumido, percebido e antecipado perante os cidadãos e agentes económicos. Um discricionarismo que no caso especÃfico da mentalidade neo-liberal se manifesta quase sempre pela defesa do domÃnio da lei do selvagem mais forte, pela defesa sem princÃpios e desregulada, não-solidária e egoÃsta dos meus interesses particulares de curo prazo. Um discricionarismo que entendo por burro. Se atentasse a uma perspectiva mais vasta do mundo e do meu papel nele, nos levaria seguramente a outros caminhos…
Práticas discricionárias não admitidas pelo modelo teórico que, em suma, desacreditam o âmbito generalista que pretendem atribuir ao quadro teórico que defendem.
O meu BMW é muito mais importante que a fome do outro, o meu BMW ou aquele que eu não tenho e que faz de mim uma “pobre alma” no mundo onde eu vivo, não está desligado do regime polÃtico estabelecido exogenamente em alguns dos paÃses fornecedores de matérias primas sustentáculo da indústria automóvel e de boa parte da nossa economia actual. Ter fome é estar em desvantagem, é ser incapaz, é pertencer a uma sociedade, a uma espécie onde grassa a extrema desigualdade.
Era bom que o Jaquinzinhos tivesse razão, que a solução se resumisse a uma vontade do faminto em abraçar uma teoria salvadora.
Pela minha parte e feita a breve crÃtica digo-vos que encontro caracterÃsticas instrumentais na teoria neo-liberal que em ambientes maduros e regulados (a discutir se quiserem) dificilmente encontrarão alternativa mais eficaz e eficiente. O Liberalismo que conheço pelos bispos da Escola do Jaquizinhos não me deslumbra, contudo, para fazer a sua acérrima defesa tamanhas são as suas lacunas. Pode dar algum gozo ter um “clube”, servir para andar à s cacetadas com os “bárbaros” de Esquerda ou coisa que o valha mas não creio que faça de qualquer mente com sentido crÃtico racional uma pessoa iluminada conhecedora da verdade suprema que terá de espalhar pelo mundo à laia de um qualquer fanático marxista-leninista ou fundamentalista religioso.
Pela parte que me toca, não faço dessa teoria nem de nenhuma outra aquilo que elas não são: soluções globais, infalÃveis e definitivas para a organização económica e social da nossa espécie. Defendo uma utilização criteriosa e combinada de várias caracterÃsticas das teorias dominantes. O esforço intelectual a que nos votámos não foi em vão. Mas não nos deixou nada de absolutamente perfeito.
Há de facto a necessidade de exercer “jurisprudência” no governo dos organismos, há espaço para a criação, espaço onde a cartilha não se adequa, há um desafio de ajustamento entre os vários instrumentos que tenhamos em acção ou como opção.
Digo-vos, por exemplo, que acredito que o poder da transparência, da sinceridade e do envolvimento no governo de uma empresa (que poderemos ver como de inspiração liberal pura num certo sentido) tem sido largamente desprezado face ao poder do chicote (também ele tantas vezes defendido pela lógica do trabalhador manhoso prolifera na boca de neo-liberais conservadores). Olho para a forma como a AutoEuropa decidiu em conjunto enfrentar a crise e vejo um exemplo, uma excepção. à demasiado fácil confundir autoridade com autoritarismo e ainda ninguém me convenceu que sustentar uma empresa com base no autoritarismo e mecanicismo do força de trabalho seja mais vantajoso do que apostar no respeito, no compromisso. Demasiadas vezes vejo o liberalismo a âdespedirâ? como primeira opção, raras vezes vejo-o a procurar alternativas e não compreendo a razão deste caminho quando é a própria razão que consegue ir provando em muitas desta excepções que há alternativa que estas, a médio prazo, se traduzem em ganhos bem mais interessantes (e mutuamente vantajosos) para a empresa e empregados.
Como definir os critérios para colmatar as falhas das teorias? Podemos e devemos tentar desenvolver novas teorias, novos instrumentos, observar a realidade e tentar compreendê-la mas, no final (e no entretanto), teremos sempre algum grau de discricionaridade a que recorrer para lidar com os fenómenos de natureza social onde o agente é o homem livre.
Resta-nos observar os princÃpios básicos da sã convivência próprios da civilização em que vivemos e defendemos (e que são muitos deles, felizmente, aceites pelas demais sociedades do planeta) e utilizar as capacidades intelectuais de que dispomos onde não se desprezem as experiências passadas e a capacidade de antecipação das consequências (que devemos humildemente reconhecer como limitada) para recomendar um percurso.
Combatendo o orgulho pessoal, cultivando a sinceridade e o tão delapidado valor da palavra de cada um (chamem-lhe honra se quiserem) e exigindo não menos que esse combate dos outros talvez cheguemos a algum mundo de patamar superior onde não faça sentido falar de pobreza.
Temos um belo caminho de pedras a percorrer!
Pela minha parte tentarei evitar os âpecadosâ? que aqui enuncio e ser fiel aos princÃpios que prezo e que nesta época histórica tenho a sorte de serem a âteoria dominanteâ? da sociedade em que vivo.