Leio Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares e lembro-me da minha triologia de há três meses, então inspirada no agora quase insignificante exemplo de Francisco Assis. Terminava assim:

«Volto às perplexidades
Retomo a pomposa rubrica: “Pela dignificação da democracia representativa”

Quantos deputados em funções na Assembleia da República surgirão em lugares elegíveis para o Parlamento Europeu?
Quantos deputados eleitos para o Parlamento Europeu interromperão o mandato para se candidatarem a outros cargos políticos? E desses quantos regressarão ao Parlamento por terem perdido as batalhas em que se envolveram?

Um vereador interrompe um mandato para concorrer às legislativas, é eleito; fica como deputado durante dois anos após o que se candidata ao Parlamento Europeu, é eleito; fica ano e meio, interrompe para se candidatar à presidência de uma câmara, é eleito; interrompe para se candidatar à presidência da república… Há aqui algo de muito errado neste percurso perfeitamente plausível de um político português.

Já repararam que passamos a vida a votar em SUPLENTES!»

E depois, chegado Junho, veio o José Manuel Barroso dar uma nova dimensão a esta histórinha. Uma nova definição de plausabilidade.

Para memória futura guardam-se em anexo os textos dos ilustres cronistas/comentadores.

José Pacheco Pereira
Coisas que devem ser ditas (para Manuela Ferreira Leite)

:
José Pacheco Pereira
1 – Esta crise política foi completamente inesperada. Bom, é da natureza de algumas crises. Mas esta foi inesperada por um único e exclusivo factor subjectivo: deveu-se a uma decisão de um homem, que introduziu efeitos de profunda perturbação na vida política portuguesa. O homem foi-se embora, os efeitos estão connosco.

2. O compromisso de Durão Barroso com os portugueses não era “softâ€?, era “hardâ€?. Era forte e feio e duro. Foi feito numa eleição difícil, ganha à tangente, foi feito pelo risco de uma coligação que tinha e tem os seus problemas. Foi feito numa situação que o primeiro-ministro sempre caracterizou como sendo de emergência nacional, gerada pelas políticas de descalabro do PS. Foi feito para um Governo que ofereceu dificuldades aos portugueses, dizendo-as absolutamente necessárias, patrióticas, e que sempre disse que não governava para eleições. Foi feito sem recuo.

3. O convite a Durão Barroso é resultado de fraquezas partilhadas e não da força da Europa. Essa fraqueza já lá estava, está no senhor Chirac, a chegar ao fim dos seus dias de poder, está no senhor Schroeder, batido como ninguém nas últimas eleições europeias, está no senhor Blair, enfraquecido pelo Iraque. Está no último decénio de contínuo défice democrático da Europa, está nessa obra-prima de mistificação política que é a “Constituiçãoâ€? europeia, está no desinteresse europeu cada vez maior pelo Parlamento, está nas derrotas quase inevitáveis dos referendos (Dinamarca, Holanda, Suécia) das posições mais europeístas, está na inanidade flagrante da política externa e de defesa europeia, está nos impasses crescentes que mostram a incapacidade da Europa para resolver os seus problemas colectivos. Durão Barroso foi escolhido porque todos estes impasses impedem uma outra escolha. Não tem sentido comparar esta situação com a de Delors, porque pura e simplesmente Delors era francês, podia sempre ter a França com ele, e a Barroso não adianta ter Portugal, se quiser ultrapassar as condicionantes de “mínimo denominador comumâ€? do seu convite.

4. Dito isto, o convite é também importante e pessoalmente honroso para Durão Barroso. O facto de ter esta origem e estas circunstâncias não minimiza o outro facto, que é os chefes de governo europeus considerarem que ele é capaz para um posto tão difícil como o de presidente da Comissão. Isso é mérito próprio. De qualquer modo, bom sucesso.

5. Sugerido o convite, José Manuel Durão Barroso devia ter dito não. Devia ter pensado no seu azar de estar no local errado (no Governo português), no tempo errado (depois de uma derrota eleitoral, a meio do mandato, sem estabilidade na sucessão), e, com legítima pena e grande sacrifício pessoal, ter dito não. Devia ter dito: “Honra-me muito o vosso convite, mas não tenho condições para aceitar neste momento difícil do meu país.â€? Devia ter pensado: “Os que me têm apoiado nesta tarefa árdua de pôr em ordem o meu país não podem ser abandonados.â€? Devia ter pensado: “Fiz promessas tão claras aos portugueses que não tenho face para agora me ir embora, todos vão pensar que fugi.â€? Devia ter pensado e certamente pensou. Mas “José Barrosoâ€? acabou por dizer sim.

6. José Barroso poderá fazer alguma coisa por Portugal, mas muito pouco. Se ultrapassar este pouco, haverá controvérsia europeia, forte e feia. O lugar de presidente da Comissão é literalmente patrulhado, em primeiro lugar, pelos primeiros-ministros europeus, depois pelo Parlamento Europeu, que entende que deve parlamentarizar a Comissão, e ainda pela imprensa mais hostil à UE, que a há muita. A sua margem de manobra pró-portuguesa é escassa. Se se queria reforçar a posição e os interesses de Portugal, era na luta por um bom pelouro para o comissário português, na escolha de um bom comissário, e na acção de um primeiro-ministro português no Conselho, que se conseguia. É aí que se jogam quase todos os interesses nacionais legítimos e com condição de eficácia. Neste jogo, que vai agora começar, o facto de o presidente da Comissão ser português pode ser contraproducente, jogar contra uma margem de negociação forte na distribuição de pelouros. Quem conhece a Europa real sabe que ninguém dá a qualquer país almoços grátis, e Portugal já comeu uma parte do almoço a que tinha direito. Dirão eles.

7. Depois, a herança que Barroso deixou ao país chama-se Santana Lopes, um partido moldado à imagem de Santana Lopes, um governo PPD-PP, muito mais à direita que o que Barroso permitia ser o seu, e uma inflexão de política que inevitavelmente (sublinho, inevitavelmente) vai dar cabo do pouco que se tinha conseguido. Aqui entra um logro e quase uma traição. Barroso fez grande parte da sua carreira partidária contra Santana Lopes, muitos dos seus apoios vinham de pessoas que consideravam que ele era, no partido, a melhor barreira contra um tipo de liderança populista que contrariava a identidade política que pensávamos ter Durão Barroso. Para muitos, era claro que votar Barroso era votar contra Santana Lopes, e se havia “barrosismoâ€? era este o seu sentido político.

8. E por isso me sinto traído, como aliás muita gente que talvez não o diga com esta clareza. Porque há várias coisas de que eu tenho a certeza. Eu não votei nas últimas legislativas no Governo que aí vem. Eu não votei nas últimas legislativas numa coligação PSD-PP, muito menos num governo PPD-PP. Eu não apoiei Durão Barroso para me sair Santana Lopes. O voto, mesmo para os intelectuais e “comentaristasâ€?, como se diz agora com desprezo, não tem nenhuma sofisticação especial. O voto, aliás, tem essa virtude de ser simples e inequívoco, uma escolha. E eu, como muita gente no PSD e no país, nunca fiz a que agora me querem impor. Este é o “golpe de Estadoâ€? de que fala Manuela Ferreira Leite. Tem a ver com a substância, não com os estatutos.

9. Qual é o problema de Santana Lopes?, podese perguntar. Respondo por mim. Nada me move pessoalmente contra Santana Lopes, que tem até qualidades pessoais que me agradam, e de que não tenho queixa qualquer no trato, mas tudo me move politicamente contra Santana Lopes. Não temos, aliás, que nos surpreender com o que será Santana Lopes primeiro-ministro, porque ele antes de o ser, já o foi. Foi-o, com toda a convicção, num concurso de faz de conta, num programa de televisão chamado Cadeira do Poder, de Albarran, ganho aliás por Torres Couto.

10. A palavra “populismoâ€? é correcta para caracterizar a sua acção política, embora ela já seja usada de forma tão genérica que parece que são populistas todos os que ganham eleições. O seu populismo vê-se no conjunto de toda a sua acção política, desde a Secretaria de Estado da Cultura e nas funções políticas e autárquicas que exerceu, e quase sempre com os mesmos resultados: pouca obra, muito espectáculo, clientelas pessoais dedicadas, alimentadas com benesses dirigidas a alvos muito específicos, de preferência escolhendo sectores mais vocais (como no caso do teatro), habilidade comunicacional associada a um investimento muito cuidado na comunicação social, no marketing, na publicidade, nenhuma correlação entre o dinheiro gasto e a obra realizada. No meio de tudo isto, uma forte personalização da acção política, apoiada essencialmente na televisão, onde Santana Lopes sabe que os “apareçómetrosâ€? são transformados em “barómetrosâ€?.

11. O problema do populismo é que gera mau governo. Os populistas governam mal, e não é por razões conjunturais, é por razões estruturais: o seu populismo impele-os para políticas espectaculares, pouco consistentes e normalmente caras. Um exemplo típico do que estou a dizer é o caso do Parque Mayer, onde todos os defeitos de uma governação populista emergem com clareza. Santana Lopes prometeu em campanha que iria renovar o parque Mayer e devolvê-lo à cidade, assente num investimento no teatro de revista, destinado a “salvá-loâ€? da extinção. Pode-se pôr em causa o gosto de Santana Lopes por uma forma de teatro popular, que conheceu um processo de decadência natural e de mudança de públicos, ou de novo a lógica clientelar no teatro, mas não é preciso sequer ir por aí.

12. A sucessão do que se passou diz tudo sobre o “modus operandiâ€? de Santana Lopes. Em Março de 2002, garantia ao “Correio da Manhãâ€? que o “Parque Mayer estará a funcionar em Agostoâ€?. Depois, nesse Setembro, com base no projecto do arquitecto Norman Foster, que haveria um novo Parque Mayer em 2004. Depois, apareceu a hipótese do jogo, do casino, e novo anúncio em Outubro de que as obras começariam em Dezembro de 2002. Depois, começou a saga do casino. O casino pagaria a renovação do Parque Mayer, mas depois verificou-se que havia mil e uma dificuldades urbanísticas e legais. O casino afinal ia ser “enterradoâ€? no parque, em Fevereiro de 2003, e iria para o Cais do Sodré em Abril de 2003, e depois para a Feira Popular. Saliente-se que grande parte destes anúncios, com títulos de caixa alta, é do próprio Santana Lopes. Ainda não está em lado nenhum.

13. De repente, e num gesto muito típico do populismo, Santana Lopes tira do bolso a decisão de ir buscar o arquitecto Frank Ghery. Como dizia a “Visãoâ€?, Ghery foi o “pacificadorâ€? e os nossos intelectuais e artistas calaram-se, como habitualmente acontece quando se gasta dinheiro e se fazem coisas emblemáticas do seu (deles) valor simbólico. Em finais de 2002, Santana anuncia a contratação de Frank Ghery e o projecto para Maio de 2003. Ninguém fez a pergunta óbvia: onde é que se ia buscar dinheiro? Se tivessem ido ao Guggenheim de Bilbau, mesmo que fosse só de fora, teriam alguma dúvida de que as espectaculares esculturas urbanas do arquitecto seriam outra coisa que caríssimas? Em Abril de 2003, já o que se sabia do projecto de Ghery contrariava tudo o que fora dito, e as promessas inicias de Santana Lopes. Já os teatros afinal podiam ir para a Feira Popular, o Casino idem. “Custos elevados do projecto impedem a fixação de lojas e escritóriosâ€?, escrevia a “Capitalâ€?. Depois, finalmente, descobriu-se que o projecto de Frank Ghery era caro. Em Outubro de 2003, titula a “Capitalâ€? “Santana Lopes sem dinheiro para arquitectoâ€?. Hoje, em Junho de 2004, continua tudo bloqueado.

14. Tudo o que caracteriza uma política populista está aqui retratado: decisões pessoais erráticas, apoiadas mais na necessidade de fazer anúncios à imprensa ou contrariar opositores do que no estudo dos problemas, encomendas apressadas, mudanças de última hora, encravamento geral de todo o processo por falta de atenção às condições legais e financeiras. Alguém tem uma ideia de quanto tudo isto já custou ao Município de Lisboa, sem qualquer resultado palpável? Certamente muitos milhões. O resultado vai ser a mais cara fotografia jamais feita em Portugal, a que ilustra o livro de Santana Lopes sobre a “culturaâ€?, Santana Lopes e Ghery mudando Lisboa. É assim que eu não quero que Portugal venha a ser governado. É assim que o será? Não sei. Está escrito nas estrelas.

Para Quê Votar?
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 02 de Julho de 2004

Vamos começar pela memória, porque esta gente detesta a memória, como todos os que vivem na oportunidade e não na coerência. Há uns anos atrás, quando o seu futuro político não ia além da função de animador sazonal dos congressos do PSD – e onde todo o seu pensamento político se resumia à patética reivindicação da herança de Sá Carneiro e do “PPD/PSD” -, Santana Lopes prestou-se (mediante “cachet”, presumo) a fingir que era primeiro-ministro de Portugal, num programa da SIC chamado “A Cadeira do Poder”, genial invenção do animador Albarran. No jogo – onde ele adoptou aquela postura grave de “estadista”, que às vezes lhe ocorre sob os holofotes da televisão – acabou, aliás, derrotado por Torres Couto. Passados uns tempos, e quando os seus diligentes serviços de propaganda pessoal (sustentada pelos contribuintes) nos propunham acreditarmos na sua grande obra política que era a de plantar umas palmeiras na praia da Figueira da Foz, o mesmo Santana Lopes, indignado – e justamente, diga-se – com um programa da mesma SIC onde era pessoalmente achincalhado, pediu uma solene audiência a Jorge Sampaio para lhe comunicar, “urbi et orbi”, que abandonava para sempre a política portuguesa.

Não foi preciso esperar muito para constatarmos que aquilo que era suposto ser a sério – o abandono da vida política – tornou-se numa brincadeira e o próprio indignado Santana Lopes acabou a trabalhar para a mesma SIC que tanto o havia ofendido. E se o que era para ser a sério se transformou numa brincadeira, o que não passava de uma brincadeira – Santana Lopes a primeiro-ministro – ameaça hoje tornar-se numa coisa séria. Parece um pesadelo e, no entanto, é um país: o nosso.

O que mudou? A progressiva degenerescência do pessoal político, a progressiva indisponibilidade dos competentes e dos sérios para servirem na política e habitarem no mesmo mundo onde habitam os Santana Lopes, os Jardins, todos aqueles para quem o poder é a única fonte de legitimidade e o único objectivo da política, todos os que, à boca cheia ou à boca pequena – como Paulo Portas ou tantos outros dentro do PSD e do PP -, falavam dele em tom de comiseração e hoje estão dispostos a, sem um estremecimento de vergonha, tratá-lo por “Senhor primeiro-ministro” e negociarem com ele fatias do grande festim de benesses que sempre acompanhou a carreira política do personagem.

Este é o homem, recordo, que, de todas as vezes que se propunha para presidente do PSD, tratava de deixar claro que não seria candidato a primeiro-ministro – tamanha era a convicção própria da sua absoluta incompetência e descredibilização para o cargo.

2. Reza a história que Pedro Santana Lopes e Durão Barroso se conheceram em pleno PREC, nos bancos da Faculdade de Direito de Lisboa. Um era protofascista, o outro maoísta – o que para nós, democratas, implica uma quase fatal atracção mútua. Ambos acabaram por encontrar o seu espaço e o seu destino comum nessa nebulosa de ideologias e de gestão de interesses que é o mal-chamado Partido Social Democrata. Ao ler a manchete do PÚBLICO do último sábado (“Durão segue para Bruxelas e oferece governo a Santana”), senti que ao país acabava de ser servido, e pronto a consumir, o desenlace de uma história privada de dois personagens que já foram íntimos, já foram desavindos e adversários, e agora são cúmplices na forma ligeira como entre si põem e dispõem dos destinos do país.

E senti-me, como qualquer português que se preze (o que é diferente de andar para aí a passear a bandeirinha…), enxovalhado, abusado e traído. Julgo, salvo melhor opinião, que vivemos ainda em democracia. E, em democracia, os governantes são votados e são despedidos pelo voto dos eleitores. Alguns dos eleitores votaram em Durão Barroso para primeiro-ministro e outros votaram em Santana Lopes para presidente da Câmara de Lisboa. Confesso que fiquei espantado, mas foi isso mesmo que aconteceu. Com que legitimidade política o primeiro abandona agora o cargo de primeiro-ministro a meio do mandato e só porque lhe apareceu coisa melhor e mais fácil, e o segundo abandona a câmara da maior cidade do país, deixando-a positivamente de pantanas, para receber o lugar vago que o outro lhe ofereceu? É assim que se fazem as coisas – vota-se em Durão para primeiro-ministro e leva-se com Santana e vota-se em Santana para a Câmara de Lisboa e leva-se com alguém que ninguém conhece? Porque haveremos então de votar, da próxima vez?

3. O destino pessoal de Durão Barroso é, de facto, notável. Faz lembrar o Pacheco, do Eça, subindo, subindo sempre, como o “menor denominador comum”. Ei-lo que chega ao topo da hierarquia europeia depois de, há umas semanas atrás, ter sido o governante mais derrotado nas eleições europeias e de ter sido, há mais de um ano, o grande fautor de desunião da Europa, de cujo futuro fez tábua rasa pelo prazer de poder tratar por “George” aquela luminária do lado de lá do Atlântico. E chega lá porque pertence ao grupo dos governantes do centro-direita europeu (ele, supostamente social-democrata), porque fala francês, porque dá garantias de assegurar uma presidência fraca contra os fortes, porque preferiu para si a glória sem interesse nacional de ser presidente da Comissão do que o interesse de ter um português como comissário numa pasta decisiva. E porque revelou um respeito pelos eleitores portugueses que lhe confiaram a chefia do Governo em tudo diferente da de outros seus colegas, como o primeiro-ministro do Luxemburgo – todavia, ao contrário de Durão Barroso, recente vencedor das eleições europeias no seu país…

Lembrem-se: há três semanas atrás, na noite em que vinha de encaixar a maior derrota eleitoral de sempre do centro-direita em Portugal, Barroso olhou-nos olhos nos olhos e disse-nos. “Entendi a mensagem dos portugueses e prometo mais e melhor trabalho.”

Lembrem-se: este era o homem que acusava Guterres de ter fugido, quando este, na sequência de uma derrota em autárquicas bem menor do que a de Barroso nas Europeias, se demitiu – como aliás o próprio Durão Barroso exigiu – para que o eleitorado dissesse se ainda confiava na maioria então governante.

Lembrem-se: este era o homem que, há pouco mais de um mês, fez aplaudir de pé, no congresso do partido, a sua ministra das Finanças, cuja política ele defendia como patriótica e que os “big spenders” do partido acusavam de ter grandes perigos eleitorais. E que agora se dispõe a deixar cair sumariamente a mesma ministra, vista como um empecilho para o estilo de governação do seu sucessor e, logo, como um empecilho para o arranjinho que deixou preparado.

O “interesse nacional”, que ele tanto gosta de invocar a propósito de tudo e de nada e que agora usa como justificação para a sua escandalosa deserção, transforma-se em escárnio quando todos podemos observar como, desde sábado passado, o primeiro-ministro em fuga anda feliz, contente e aliviado.

4. E Jorge Sampaio, perguntam todos? Jorge Sampaio tem um problema que só ele próprio conseguiria inventar, com esta fobia dos consensos e de fugir às crises, como se elas não pudessem ser virtuosas, clarificadoras e – como é o caso – higiénicas. Jorge Sampaio não pode descalçar a bota por meios que a Constituição não permita. Mas pode fazê-lo por qualquer meio que a Constituição não proíba, e entre esses está o uso das suas convicções políticas, dentro do quadro dos seus poderes constitucionais. Jorge Sampaio foi eleito com base em determinado programa político e por isso é que uma parte do eleitorado – a esquerda – votou nele e a direita não. Pode e deve continuar a ser Presidente de todos os portugueses no que se refere à salvaguarda da Constituição, do funcionamento das instituições e da garantia de direitos iguais para todos. Mas não deve, mesmo que possa, trair o programa e as ideias políticas com base nas quais uma maioria de portugueses lhe confiou o cargo. Os que votaram Sampaio não aceitam este golpe de Estado palaciano congeminado na Rua de Buenos Aires. O país não se decide assim, em “petit comité” de usufrutuários do poder. Se o Presidente, nesta hora, não vê claro o que há-de fazer, não percebo para que haveremos também de continuar a votar num Presidente. Só faltava agora ficarmos a pensar que, com Cavaco Silva na presidência, Santana Lopes não chegaria ao poder com esta leviandade palaciana.

Jornalista

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