Para memória futura, a prosa “A Confiança“, por Adriano Moreira, hoje no Diário de Notícias:
” Não se encontra hoje em exercício responsável nenhum centro de planificação de políticas públicas que não esteja atento ao princípio da incerteza, e advertido pela experiência de que, como ficou evidente pelos efeitos colaterais da decisão de proceder à execução dos bombardeamentos atómicos, que o afastamento da ética é mais ameaçador na área da política do que no campo da ciência, o que não impede que cada um dos sectores tenha os seus loucos.
Todos, por isso, enfrentamos a inevitável circunstância de que nenhuma constituição, nem qualquer programa eleitoral, podem evitar um espaço de vazio programático, no qual nascem exigências de criatividade governativa para responder aos acidentes não previstos, e que vão originando uma narrativa sem passado.
É certamente difícil, mas não dispensável, não atribuir todo o processo a condutas maquiavélicas dos interventores responsáveis pela governação, porque a recta intenção não está isenta do erro, nem da necessidade de flexibilizar as promessas e compromissos para atender aos riscos que não fizeram parte da circunstância vivida na luta pelo poder.
Nas palavras de Oliveira Martins, meditando sobre uma das maiores crises nacionais, ” nos homens sinceros e sinceramente espontâneos, os actos e os sentimentos misturam-se, por vezes, de um modo incoerente para os que, julgados por si próprios, pensam que todos, calculadamente, procedem como actores, representando um certo papel.
Não é assim. Felizmente, a humanidade não se compõe só de historiões, embora nela predominem, com efeito, os que levaram a vida como uma comédia”. Ocupava-se de Nun’Álvares, talvez um modelo excessivo para o tempo do Estado Espectáculo, mas ainda assim uma referência excelente para recordar que, sendo estrutural a incerteza, a relação de confiança entre a população e governantes é o alicerce sem o qual nenhuma escolha de lideranças mobilizadoras é consistente.
Este saber de experiências feito, defronta o infatigável Parlamento dos Murmúrios, no sentido de descredibilizar os adversários. Não é impossível que esta traça de combate também venha acompanhada de propostas idóneas de governo, mas ainda assim o seu efeito mais determinante é o de conduzir o eleitorado no sentido de escolher o menos mau dos candidatos, e não o de conduzir para a escolha da excelência.
A atenção fixada nos defeitos das eventuais virtudes não será a mais habilitada a avaliar os méritos dos programas, e seguramente não é a mais inspiradora da confiança sem a qual nenhum regime político funciona com equilíbrio e mobilização das vontades da sociedade civil.
Nem sequer assegura que o exercício do voto consciente atraia a maioria dos eleitores, e comprovadamente tende para instaurar o descrédito do sistema jurídico, e a suspeição como precaução no que respeita à gestão do interesse público.
A amostragem do processo eleitoral a que os portugueses foram chamados deu sinais excessivos do abuso de procedimentos erosivos da confiabilidade dos responsáveis em disputa, exactamente o oposto do exigível para decidir a quem entregar o poder político, uma exigência que se torna esdrúxula quando se combinam os graves riscos sofridos com as profundas incertezas múltiplas, o que tudo agora converge na circunstância portuguesa.
Contadas vozes, algumas de movimentos demonstradamente com reduzido poder da palavra em face do sistema, fizeram ouvir apelos que, dirigindo-se menos aos programas, que sobretudo parecem mais compostos de directivas do que de propostas concretas, e dirigindo-se mais às vontades, convocaram para a exigência primária de restaurar a confiança da comunidade portuguesa, e os votos devem ser no sentido de que pelo menos tenha ficado uma semente que germine. “