Pronto amigos, quando quiserem saber o que pensa o povo é falar com a Fernanda Câncio. Brincamos ao "parece-me que".
Vale a pena pôr em risco todo o aparelho social (além do judicial) desenvolvido para atender a crianças cujos pais não estejam em condições de as criar dando de barato que quem acolhe é bom samaritano? Isso basta-nos para satisfazer a nossa responsabilidade colectiva? Fernanda Câncio e outros que defendem o mesmo ponto, pretende tudo menorizar perante o amor do bom samaritano: desde a legalidade face aos procedimentos da adopção, passando pelo direito da filha em conhecer o pai biológico, até ao respeito pelo direito da justiça em averiguar directamente da real condição da criança.
O que aconteceu em várias fases do processo é que os juízes terão encontrado ilegalidades várias mas também dúvidas pertinentes quanto à justificação, qualidade e interesse do amor prestado. Mais do que apreciar a lei, suponho que a maior dificuldade de um tribunal neste caso tenha sido precisamente conseguir ter a noção exacta do que moveu este casal, ou seja, interpretar, à luz do interesse da criança (e das crianças como ela), a motivação para terem tomado a caso integralmente por mão própria, indo ao ponto de recusar acatar as recomendações/decisões do tribunal.
No acórdão já aqui citado é notório que os juízes, perante as provas produzidas em tribunal, ficaram convencidos que no início e durante este processo o casal esteve longe da fábula de "bom samaritano" e agiu mais movido pelo seu interesse pessoal em terem uma criança do que pelo interesse da criança em questão, apostando por diversas vezes nas vantagens do facto consumado e, até (deduzo eu), na manipulação emocional à qual a sua defesa se presta – matéria da qual não têm o exclusiva como também foi evidente do “outro lado”. Ora isto no meu dicionário nada tem a ver com a questão "afectividade" versus "laços de sangue".
Terá o tribunal errado nessa apreciação? Pelo que li do que foi provado parece-me no mínimo pertinente que o tribunal duvidasse do "bom samaritano". Deveria o Tribunal ter extraído daí as consequências que extraiu? Deveria à luz disto (não esquecendo o facto consumado de a criança conhecer apenas uns pais) ter menorizado o interesse do pai biológico e perdoado as más práticas? Não sei, mas os riscos de não o ter feito quando estava convencido da má fé do casal em causa estariam (estarão) longe de se resumirem a este caso concreto e desta criança em concreto. Servir a lei passa por encontrar esse equilíbrio entre a discricionariedade de cada caso e a garantia de que a abstracção e generalidade da lei (garantes fundamentais de um estado de direito) não são postos definitivamente em causa.
Imaginado que a motivação do casal terá sido a apurada em tribunal (defesa do interesse próprio em ter uma criança a qualquer custo), e admitindo que não seja disruptora dentro dos trâmites da lei (via adopção, após escrutínio e após consideração das hipóteses existentes ou não), o facto é que pode lançar os direitos de todas as crianças em situações similares numa confusão legal de difícil gestão quando servir de móbil a uma adopção directa. Um problema tanto maior quanto se admita por bem o desrespeito continuado da lei – a tal que cremos crer, defende acima de tudo os interesses superiores da criança.
Uma pergunta que ainda não vi colocada mas que julgo não deve ser ignorada, perante a liberalização implícita da adopção directa que se vem defendendo por via deste caso, é a de saber com que defesa ficamos perante o tráfico e comercialização de crianças se casos destes passarem a decorrer ao sabor do ruído da rua e das parangonas de jornalistas de causas?
Poderia o casal ter pago para ficar com a criança? Estaria a mãe em condições de reagir e de se decidir em consciência se fosse confrontada perante essa hipótese? Nada disto foi provado mas tudo isto é plausível em situações similares, é aliás prática corrente pelo mundo fora – à margem das respectivas leis. Poderá essa prática passar a ser implementada havendo legítimas esperanças de quem assim procede conseguir contornar a lei produzindo um facto consumado? Mais uma vez volto a repetir, há questões tão ou mais relevantes para quem quiser discutir este caso tipo além da dicotomia "sangue" versus "afecto".
Se não formos capazes de, enquanto sociedade, ir além do caso concreto corremos o risco de ter de enfrentar fantasma do passado que julgávamos há muito erradicados. Se queremos fixar-nos na emoção também podemos perguntar qual é o pai que vê matar um filho que não seja favorável à pena de morte para o criminoso? Muito poucos, imagino, e contudo ainda bem que não é ele que faz as leis…