O economista Miguel Frasquinho na sua crónica quinzenal do Jornal de Negócios apresenta-nos uma ideia que só não é peregrina por já ter provas dadas de bom sucesso em alguns países dispersos um pouco por todo o planeta.
O desafio que aborda é o de combater a evasão fiscal e, após alguns brandos considerandos sobre a eficácia da publicidade do Ministério das Finanças e das medidas de incentivo à facturação (deduções à colecta em sede de IRS através de facturas de restauração entre outras), apresenta-nos o sorteio.
Se bem percebi a administração fiscal é convidada a periodicamente, digamos, semanalmente, sortear um contribuinte, não para ser inspeccionado pelos auditores das finanças mas para se deslocar, por exemplo, a um estúdio de televisão e apresentar todas as facturas passadas em seu nome com data do ano anterior. O prémio do contribuinte será equivalente ao somatório dos valores de todas as facturas legalmente aceites que conseguir apresentar.

Um pequeno senão que se calhar há alguns anos poderia dar aso a manchetes de indignação é a companhia de países e cidades onde se aplica actualmente esta promoção do respeito pela tributação: Paraguai, Costa Rica, Taiwan e algumas zonas da China continental. Mas que diabo, mais que não fosse pela auto-estima tão em baixo, quem somos nós para termos complexos de superioridade perante este companheiros de luta?
A ideia é tão hollywoodesca, tão básica e tão simples que pela minha parte acho mesmo que vale a pena tentar. Não resolverá em absoluto o problema mas só lhe vejo vantagens. Quem vota contra?

Em anexo deixo-vos a crónica supra citada.

Miguel Frasquilho
A morte e o pagamento de impostos
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Um dos provérbios mais conhecidos nos Estados Unidos tem a sua origem numa frase de uma carta escrita em 1789 pelo então Presidente Benjamin Franklin (1706-90) a Jean-Baptiste Leroy e é o seguinte: “In this world nothing is certain but death and taxesâ€?.
Um dos provérbios mais conhecidos nos Estados Unidos tem a sua origem numa frase de uma carta escrita em 1789 pelo então Presidente Benjamin Franklin (1706-90) a Jean-Baptiste Leroy e é o seguinte: “In this world nothing is certain but death and taxes”.

Isto é, nada no mundo é certo excepto a morte e o pagamento de impostos.

Desde o século XVIII que esta máxima se tornou célebre entre os norte-americanos, pelo que não é surpreendente que a dimensão da economia paralela, subterrânea ou “informal” (designação mais “chique” e hoje tão em voga) nos EUA seja a menor de entre os países da OCDE, correspondendo a menos de 9% do PIB – que compara com os 22,5% de Portugal ou Espanha, 27% em Itália, 28,5% na Grécia, ou mesmo 12,5% no Reino Unido, 15% na França e 16% na Alemanha (os dados são da OCDE).

Penso que em raras ocasiões no passado a questão da fraude e evasão fiscal terá estado tão em cima da mesa, em Portugal, como hoje se verifica. Com toda a propriedade – como os números acima documentam.

É provável que seja neste ano de 2004, que agora iniciamos, que o cruzamento de dados entre o fisco e a segurança social seja levado a cabo de forma efectiva pela primeira vez, o que acalenta esperanças de que a luta contra essa fraude e evasão possa começar a ter mais resultados.

Mas é preciso não ter ilusões: a questão da fuga aos impostos é, antes de tudo, uma questão cultural e de mentalidades. Se, em média, qualquer americano toma o pagamento de impostos tão certo como a morte (já desde o século XVIII…), em Portugal, a resposta à pergunta “O que é que toma como certo na vida?”, por certo não incluiria o pagamento de impostos… Na verdade, julgo mesmo que se alguém no nosso país respondesse que tomava o pagamento de impostos como certo, seria alvo de chacota generalizada.

Porque o que é considerado um feito é fugir sempre que se pode, é não pagar quando é devido, ou ludibriar a administração (fiscal, neste caso) e gabar-se disso – o que, em geral, é visto com admiração por aqueles que nos rodeiam. Alguns casos são bem conhecidos. E são, também, em minha opinião, de uma total falta de vergonha e pudor da parte de quem os propagandeia. E, além disso, quantas investigações a casos de fraude e evasão fiscal o leitor se lembra de serem bem sucedidos?… É que, para “ajudar à festa”, existe a convicção de que a impunidade – essa sim! – é que é quase certa… ao contrário do que acontece noutras paragens.

É por isso que, em meu entender, medidas como o famoso PEC (pagamento especial por conta), apesar de fazer muito justo pagar pelo pecador, é certamente melhor e menos injusto do que nada fazer e continuar a deixar que muitos contribuintes, quer individuais, quer colectivos, não cumpram com as suas obrigações fiscais (mas claro que espero que seja uma medida transitória e que sistemas mais eficazes e fiscalmente mais justos sejam entretanto desenvolvidos).

É certo que frases como “se todos pagarmos, todos pagamos menos” ou “é no pagamento de impostos que o seu dinheiro deve estar” (como alguns anúncios mais conhecidos da administração fiscal hoje publicitam) são deontologicamente correctas e duvido que alguém questione a sua justeza.

O problema é quando toca no bolso de cada um. Na verdade, há uma irresistível vontade de aplicarmos as máximas que acabei de referir apenas aos outros e não a nós próprios, pensando “se todos os outros pagarem menos eu, não haverá grande diferença” (o que significa apanhar uma boleia – “free ride” na literatura anglo-saxónica). Só que, se todos pensarmos assim, o caso muda de figura, e é assim que chegamos a toda a fraude e evasão que hoje existe, bem como toda a injustiça fiscal que daí deriva.

Bem sei que muitos poderão argumentar que este problema tem a dimensão que tem porque os serviços públicos que deveriam corresponder à carga fiscal que suportamos deixam muito a desejar – por outras palavras, que o montante de impostos que pagamos é excessivo para a qualidade dos serviços que o Estado nos presta. Não posso deixar de concordar, mas também é verdade que não é por isso que devemos deixar, por nossa iniciativa, de fugir ao pagamento de impostos.

Os anúncios que puxam à consciência de cada um deverão continuar – mas, como já referi, os resultados práticos não serão brilhantes. O mesmo acontece, por exemplo, com a possibilidade de deduzir, em sede de IRS, facturas de pagamentos do IVA de determinados bens e serviços – desde logo porque o montante máximo que pode ser deduzido é baixo (Eur 50) e, como tal, desincentivador de pedir as tais facturas. Já uma fiscalização maior e medidas coercivas exemplares são, sem dúvida, desejáveis e ajudarão a mudar em muito o actual panorama (aliás, sem uma actuação eficaz das autoridades, o cruzamento de dados entre o fisco e a segurança social estará votado ao fracasso…).

Mas existem também outras formas de tentar combater a fraude e evasão fiscal – através de um convencimento real dos contribuintes e não “à força”. Por exemplo, a realização de concursos ou lotarias fiscais com uma periodicidade a definir, com grande cobertura mediática e em que, mediante a apresentação de facturas de compras efectuadas, os contribuintes ganhariam prémios, quer monetários, quer em espécie (como automóveis), naturalmente de acordo com o montante da(s) factura(s) em questão.

Em alguns países da América Latina (Paraguai e Costa Rica) e na China (em regiões como Pequim e Shanghai, que hoje são apontadas como referências em termos de sucesso económico) e Taiwan, expedientes deste género já foram colocados em marcha, precisamente com o intuito de combater a fraude e fuga fiscal e de tentar incutir uma mentalidade diferente entre os contribuintes.

Sei que muitos leitores poderão estar agora a pensar – “mas que ideia mais disparatada!” ou “desceríamos ao terceiro mundo!”. Bom, em primeiro lugar, tenho sérias dúvidas de que, do modo como em geral encaramos esta matéria e face a ela nos comportamos, tenhamos lugar noutro mundo qualquer que não seja o terceiro. Por outro lado, se é verdade que países como o Paraguai ou a Costa Rica poderão não ser o exemplo acabado de sucesso económico, já o mesmo não sucede com a China ou Taiwan – cuja trajectória recente nada fica a dever a muito país ocidental…

Além disso, qual a diferença de um expediente deste género relativamente a jogos populares bem conhecidos como a lotaria, o totoloto ou o totobola? Na verdade, estamos a falar de jogos cujo produto, para além de poder proporcionar prémios a jogadores afortunados, tem igualmente uma vertente social, pois contribui para melhorar a vida de muitos que não são favorecidos.

Ora, o que aqui está em questão é uma possibilidade (e não mais do que isso!) de aumentar a receita fiscal combatendo a fraude e a evasão de forma não-coerciva e tentar ajudar a que a carga fiscal possa descer para todos, actuando com eficácia acrescida e diminuindo a injustiça. Para além de que – assim estou convencido – a possibilidade real de ganhar prémios actuaria sobre os contribuintes portugueses (é a mentalidade infelizmente reinante no país) com uma eficácia que não tem comparação com qualquer anúncio publicitário – por mais bem feito e apelativo que fosse.

Faltaria sempre “a cenoura”, que aqui seria a possibilidade de ganhar um prémio. E, claro, não nos devemos esquecer que, à semelhança do que acontece nos outros jogos populares tradicionais já referidos, os próprios prémios distribuídos são tributados, angariando receitas adicionais para o Estado.

Resultados de experiências do género já realizadas? Não são ainda muito conhecidos (dado que se trata de experiências na sua maioria recentes), mas em Shanghai, por exemplo, o número de facturas admissíveis a concursos mais do que triplicou após os primeiras lotarias fiscais apresentadas na televisão – e o número de contribuintes que pedem factura literalmente explodiu.

Ora é evidente que a fraude e evasão fiscal fica, deste modo, muito mais dificultada… além de que tal poderia ajudar a mudar a “tal” cultura ou mentalidade que faz com que, vergonhosamente, só a morte seja encarada como certa no nosso país.

Obviamente, repito, trata-se apenas de uma ideia que aqui deixo (e não mais do que isso!), que ainda por cima nem é original, que – claro! – não invalida todos os procedimentos actualmente em marcha a que já me referi e que, se for caso disso, poderá ser pensada com maior profundidade e detalhe de modo a poder ser colocada em prática. Mas bem que poderá ser uma ajuda – e ainda por cima “simpática”, porque não é coerciva – no combate a um dos maiores flagelos da economia portuguesa, com reflexos marcantes em termos de justiça fiscal e social. Quer apostar, caro leitor? in Canal de Negócios /Jornal de Negócios, 7 de Janeiro de 2004

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