E eu, mal abastecido de oxigénio no cérebro, a pensar que assim um tipo às direitas como o Liberdade de Expressão ia gostar deste meu texto… Afinal achou que não bati o suficiente no Estado. Mas aqui venho em sua ajuda para que finalmente estejamos de acordo:
Desde que nasci, há quase três décadas, tenho familiares que são proprietários de terrenos florestáveis e pelo menos desde então eles têm sido livres de plantar por lá o que muito bem entendem; sublinho que nem um subsídio granjearam. Garanto também que nenhum deles deixou de ser pastor para ver crescer pinheiros (ainda que eu saiba de uns primos afastados que dedicaram os seus lameiros ao plantio bem mais rentável de coníferas). Por razões puramente interesseiras (as dos seus interesses económicos baseados na rentabilização máxima dos recursos disponíveis), o que por lá vemos plantado são essencialmente os tais pinheiros bravos (já velhos conhecidos de inúmeras gerações de portugueses) e essa relativa novidade que é o perfumado da Austrália, as tais árvores de que fala o Liberdade de Expressão. Naturalmente, ainda que não tendo sido o Estado a obriga-los a tais culturas a culpa de tais opções ao longo dos últimos 30 anos é sem dúvida desse mesmo Estado que não lhes abriu os olhos, que não lhes deu cultura e conhecimentos técnicos, que foi omisso em lhes fazer perceber o risco dos seus erros e a ilusão potencial do retorno esperado face às rentabilidades (e risco) futuros.
Não lhes explicou sequer que há uma palavra bonita que se chama ecologia e que faz muito bem à saúde. Por isso estamos de acordo: a culpa é do Estado. O Estado aliás só faz asneiras. Mas cuidado, caro Liberdade de Expressão, quando fala em pôr o Estado a “proteger terceiros”. Eu digo antes, o Estado que não se atreva a tomar medidas, afinal, muito provavelmente, e atendendo àquilo que diz e digo aqui dele, só irá cercear a livre iniciativa e penalizar essa casta tão rara na nossa nação que são os investidores de risco. A grande maioria dos penalizados pelos incêndios não era ela própria constituída por proprietários que incorriam nos mesmos erros? Tiveram o que mereceram. Faz parte das regras do jogo. Os dois ou três desgraçados imaculados que foram vítimas não passaram disso mesmo, duas ou três vítimas colaterais que não poderão impedir o regular funcionamento do mercado e muito menos justificar uma desproporcionada intervenção do Estado. Lamentemos e prestemos as condolências às famílias e mitiguemos o dano com um pouco de caridade, esse instrumento tão precioso e eficaz como tão bem provaram os portugueses ao aceitarem o repto de tantas televisões, jornais e quejandos na recolha de donativos. Deixe o mercado agir livremente, caro Liberdade de Expressão, não se tente. Teve um momento de fraqueza perfeitamente compreensível. Ele ajustará a melhor solução, seja ela a da repetição do passado (que só se repetirá se for a solução mais eficiente na racionalidade do lucro, a única admissível à face da Terra e planetas limítrofes), ou a do abandono da floresta (com o potencial desinteresse dos proprietários escaldados – imagine a “ecologia” que ganharíamos com os matagais florescentes, em 30 ou 40 anos com um pouco de sorte tínhamos uma muito genuína floresta de cheirosas mimosas em boa parte do país).
Deixe-se o Estado ficar mudo e quedo porque os agentes económicos, no longo prazo, conquistarão a racionalidade que lhes faltou, digo, recuperarão a racionalidade que está neles adormecida. Se as comunidades acharem que lhes faltam bombeiros mobilizar-se-ão para os apagar. Afinal não ouvimos tantos e tantos relatos de vizinhos da tragédia que ficaram calmamente a beber umas e outras na cervejaria da aldeia na presença das primeiras labaredas na serra? Quer agora que sejam os meus impostos a servir para apagar o fogo nas casas desses preguiçosos? Deixe o Estado em paz que já tem culpas que chegue. A bem do mercado, que somos afinal todos nós; a única entidade com algum laivo de comunidade que verdadeiramente interessa.
(Acham que com mais algum treino tenho hipóteses de concorrer ao título do mais populista dos ultra-liberais?)