Vencedores e perdedores

Com a reconfiguração do puzzle eleitoral patrocinada pela primeira coligação pré-eleitoral com reais hipóteses de formar governo em mais de três décadas, PSD e CDS apesar de terem tido um dos piores resultados combinados de sempre, registando uma das maiores quedas eleitorais da história da nossa democracia em eleições sucessivas, ganharam as eleições. E como tal têm prioridade na tentativa de formação de um governo estável. Tendo uma minoria de deputados esse exercício não lhes garante, contudo, que serão, de facto, governo.

Do lado do PS houve muito poucas razões para celebrar na noite de 4 de outubro além da evidente perda de maioria absoluta pela PAF. É certo que recuperou eleitorado e uma dúzia de mandatos mas falhou todos os seus objetivos fundamentais.

Face a isto o que esperar do dia seguinte?

Desde logo uma natural necessidade de, em tempo útil, relegitimar a liderança do partido, como o atual secretário geral, em boa hora, propôs e, em condições normais, ter o PS a ocupar o seu papel como líder da oposição. Em condições normais, repito, e, atendendo à crescente deriva para a direita de PSD e CDS e recordando a manifesta incapacidade ou indisponibilidade destes em ter estabelecido uma relação minimamente cooperante com o PS ao longo da última legislatura, o PS remeter-se-ia à oposição sendo pressionado para, salvo manifesta e inaceitável provocação da direita, viabilizar as peças fundamentais para a existência de um governo estável.

Mas estamos em condições normais?

Em condições normais, a esquerda do PS não tem mais de um milhão de votos (como teve). Em condições normais, António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa não teriam passado a campanha a ser desafiados por um número expressivo de eleitores a pedirem-lhes que se comprometessem com um entendimento.

Em condições normais, a direita não concorrer coligada.

Em condições normais, a frente de direita não passa uma parte importante da campanha a acenar com o papão de uma frente de esquerda para tentar captar eleitorado centrista.

Estamos então num cenário em que os partidos à nossa esquerda captaram mais novos eleitores do que o Partido Socialista, em que BE e CDU repetidamente anunciam que estão disponíveis para assumir responsabilidades governativas e em que, terminadas as eleições, é possível uma coligação que ofereça uma maioria absoluta no parlamento constituída pelos partidos de esquerda. Neste cenário, não vejo como o Partido Socialista pudesse remeter-se à situação acima descrita das “condições normais” sem tentar, empenhadamente, atingir o entendimento necessário para viabilizar um governo estável à esquerda.

Por muito que a repetida indisponibilidade de CDU e BE em assumir responsabilidades governativas tenha atrofiado as mentes de muitos democratas ao longo das últimas décadas e por mais que a progressiva fulanização mediática com a conversão das campanhas em corridas de cavalos imputadas aos líderes partidários tenha distorcido a imagem do nosso regime parlamentar de pendor semi-presidencial, em Portugal, a legitimidade dos mandatos é soberana para determinar o governo. Não estamos nos EUA ou em França. E um governo faz-se ou desfaz-se por maioria como recentemente recordámos em 2009 e 2011.

Em Portugal, não há prémios de mandatos aos vencedores, nem obrigações constitucionais que imponham ao líder da oposição remeter-se a abstenções violentas ou mesmo violentíssimas. Estamos manifestamente mais próximo de qualquer dos nossos parceiros europeus que de forma madura e natural procuram maiorias estáveis com coligações em todo o espectro. Tragicamente, para a esquerda, até hoje, sempre se tem revelado impossível chegarmos a um entendimento viável.

Será desta?

Olhando friamente para a história e para o que nos separa à esquerda, o cenário mais provável é o fracasso. Mas desta vez algo se mexeu e é natural alimentar alguma esperança.

Não estamos em 1917, nem em 1975, isso fará diferença? O PS dispôs-se, e bem, a investir capital político pagando para ver e, naturalmente, disponibilizando par algumas cedências. Mas tudo dependerá precisamente das negociações que, recordo, não se fazem entre o PS e uma frente unida, mas entre o PS e duas outras forças políticas bem diferentes.

E se falhar?

Nada se perde. Restará a relevância de se perceber se o fracasso eventual se fundará na lentidão do movimento de transformação que poderá estar, de facto, em curso à nossa esquerda ou se o exercício pouco mais foi do que uma manobra algo caricata para iludir uma mudança exigida por uma parte importante do eleitorado e à qual que não se consegue dar resposta. Se for a última, teremos tomado vacina para muitos e bons anos.

Que governo de esquerda?

Parece-me manifestamente insuficiente o PS apresentar-se ao Presidente da República para governar sem um compromisso claro, público e inequívoco da CDU e BE que assegure uma maioria absoluta de mandatos determinados em aprovar o programa de governo, o orçamento do estado, garantindo o cumprimento escrupuloso dos compromissos em matéria orçamental assumidos no âmbito da Zona Euro durante a legislatura. E pegando no exemplo dos nossos parceiros europeus, o melhor mecanismo para alcançar esse nível de comprometimento alcança-se com uma coligação em que todos partilhem diretamente responsabilidades governativas. Se tal não for possível, a estabilidade política será necessariamente mais frágil ainda que admita que um acordo suficientemente cristalino nos termos que descrevi possa vir a justificar a assunção da governação.

Será possível? Ou teremos de reconhecer que nos afastámos pouco das “condições normais”? Em breve saberemos.

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