Ontem andei por aqui:

Mercados Financeiros e Evolução Económica Europeia

 Caros camaradas,

antes de mais deixem-me agradecer o convite que me foi dirigido pela Juventude Socialista de Almada na pessoa da sua coordenadora Debora Rodrigues e cumprimentar todos os participantes.

 I

Daqui a umas semanas surgirá de Berlim, do gabinete de Wolfgang Schauble um plano para reformar a Zona Euro. Ele prometeu-o ainda antes de ser reconduzido no ministério das finanças alemão e voltou a reafirma-lo muito recentemente na imprensa internacional. Do que se conhece, sabe-se que quer centralizar o poder de decisão sobre a política fiscal e orçamental da zona euro. Sabe-se que quer um ministro das finanças da Zona Euro com poder para aprovar ao devolver orçamentos nacionais, quer um parlamento da Zona Euro num formato ainda desconhecido e quer alguma forma de mecanismo permanente de resgate ou de apoio aos países membros.

Esta será, a menos que surja algum percalço a leste, a agenda do resto do ano de 2014.

Como dizia recentemente Thomas Piketty, assessor económico do presidente da república francês e o economista do momento em termos internacionais, se não soubermos, à esquerda, o que queremos em termos de reforma da Europa, corremos o risco de obter pouco mais do que o desenvolvimento do que nos foi apresentado em 2012 à giza do tratado orçamental: uma reforma pobre que reforçou um federalismo tecnocrático, ineficiente e democraticamente inviável, a prazo. Palavras que não estão distantes de outras mais antigas e veiculadas de forma insistente pelo economista grego Yanis Varoufakis ou pelo economista belga Paul de Grauwe.

Creio que o maior desafio em termos económicos e políticos para a Europa, no curto e médio prazo, será precisamente conseguir fazer um debate equilibrado, ideologicamente participado e que lance bases sólidas para o futuro da Zona Euro e, concomitantemente da própria União Europeia.

Se admitirmos que há mais mundo para alem das idiossincrasias específicas do eixo pró-austeritário, se acharmos que a Europa tem de ser construída superando preceitos moralistas fundados na ignorância mútua, se duvidarmos da bondade de alguns mecanismos e regras instituídas nos tratados e se admitirmos que a Zona Euro e a União Europeia têm de encontrar um mecanismo eficaz de concertação permanente entre as diversas vontades populares expressas, então temos de conseguir apresentar um outro caderno de encargos. Um caderno reformista com o nosso cunho ideológico, com as nossas preocupações sociais e suficientemente enraizado na realidade de modo a que consiga criar pontes e formar alianças entre uma parte significativa dos 18 estados membros envolvidos na União monetária e entre os restantes membros da União Europeia.

Retomo Piketty como poderia retomar o trilema de Dani Rodrik citando-o no Manifesto para nossa Europa que subscreveu com mais alguns intelectuais e académicos franceses,:

 “(…) É tempo de reconhecer que as instituições europeias existentes são disfuncionais e necessitam de ser reconstruidas. A questão central é simples: a democracia e as autoridades públicas têm de ser capacitadas para recuperar o controlo e a regulação efetiva do capitalismo financeiro globalizado do século XXI. Uma moeda única com 18 dívidas públicas individuais sobre as quais os mercados podem especular livremente e 18 sistemas de impostos e benefícios fiscais envolvidos numa rivalidade mútua e sem limitações não está a funcionar e nunca irá funcionar. Os países da Zona Euro escolheram partilhar a sua soberania monetária e, consequentemente, abandonar a arma da desvalorização unilateral, mas sem que tenham desenvolvido instrumentos económicos, fiscais e orçamentais comuns. Esta terra de ninguém é o prior de todos os mundos. (…)”

 Sem querer aqui subscrever necessariamente as três propostas deste Manifesto acho que vale a pena divulga-las sumariamente, até para percebermos em que linhas na França se está a congeminar uma eventual contraproposta ao que aí vem da Alemanha.

1ª proposta: Harmonizar o código do IRC (que não as taxas) de modo a que não haja diferenças na base de incidência do imposto – começando por garantir identidade entre o regime fiscal francês e alemão a expandir a toda a Zona Euro garantir-se-ia também nesta proposta uma dotação, uma fração deste imposto harmonizado que reverteria para um orçamento da Zona Euro equivalente a algo entre 0,5% e 1% do PIB da Zona Euro.

2ª proposta: Definir e fundar uma câmara parlamentar europeia, composta ou pelos eurodeputados dos países da Zona Euro ou (com preferência dos signatários para esta última) por deputados eleitos nos parlamentos nacionais, composta proporcionalmente ao peso populacional e reproduzindo a geometria política de cada parlamento. Esta câmara substituirá o Conselho Europeu e nela se encontrará a legitimidade democrática para se garantir o desenho e a exequibilidade da primeira proposta e de todas as outras que apontem no sentido de uma harmonização e concertação fiscal e de política económica. A criação de um governo para a Zona Euro poderia então ser possível.

3ª proposta: Assumir a mutualização da dívida dentro da Zona Euro. Sem uma dimensão de mutualização a especulação sobre as taxas de juro da dívida pública dos 18 países continuará a existir e a gerar episódios de crise recorrentes. Os signatários sugerem tomar como ponto de partida a proposta de 2011 do grupo de sábios que apoia a Chanceler Alemã e que apontava para a mutualização de toda a dívida que superasse os 60% do PIB garantindo que a sua gestão teria um pilar adicional de cariz político que procederia à gestão da dívida (e consequentemente à definição do nível de défice comum), estabelecendo as medidas consideras adequadas de acordo com a vontade da maioria política no órgão de decisão europeu (Parlamento ou Câmara da Zona Euro).

O manifesto termina procurando responder a algumas das críticas recorrentes que se levantam a propostas de alteração do status quo:

 “(…) Afirmar que a opinião pública não gosta da Europa atual e daí concluir que não deveria haver qualquer alteração no seu funcionamento elementar e nas suas instituições, representa uma inconsistência danosa. Quando o governo alemão apresentar, nos próximos meses, as suas novas propostas de reforma aos tratados nada garante que estas reformas serão mais satisfatórias do que as de 2012. Mas mais do que ficar sentados sobre as nossas mãos aguardando, o que precisamos é de finalmente iniciar um debate construtivo em França de forma a que nós finalmente tenhamos uma Europa social e democrática.(…)”

O nosso secretário geral têm veiculado um conjunto de propostas de reforma, a juventude socialista tem também as suas, o Manifesto de Piketty apresenta algumas adicionais ou variantes às sugeridas pelo PS, e certamente outras propostas existem em debate nos vários think thanks progressistas e de movimentos e partidos da esquerda democrática europeia. Nesse particular temos bons sinais de esperança ainda que os pontos de contacto tenham de se multiplicar e a consolidação de uma proposta tenha de acelerar rapidamente para chegar em tempo útil. O que é certo é que sem pensamento e sem a dose indispensável de audácia, estamos derrotados à partida.

II

Há um fator crítico a que o manifesto alude no seu final que é precisamente a necessidade de envolver os cidadãos europeus, propondo o debate e disputando a agenda nacional e europeia. No meio do combate político nacional, nesta campanha eleitoral e posteriormente a ela temos de encontrar espaço e energia para colocar esta discussão entre as matérias determinantes que devem envolver os portugueses. Com a exata medida do relevo e gravidade da situação. E digo isto tanto por acreditar que terá de se fazer por aqui o caminho para salvar a Zona Euro e a União Europeia como por ser previdente e com isso querer deixar a semente de esperança a que teremos de recorrer caso as batalhas políticas que se avizinham não nos corram de feição.

É fundamental perceber os vários tabuleiros em que se faz a política que influencia a vida corrente de qualquer um de nós. Há que ter a ambição de aumentar a literacia política da nossa população pois no final ela será determinante para conseguirmos atingir os nossos objetivos ou, no pior dos cenários, para nos protegermos de derivas radicais e descontroladas alimentadas pela incompreensão, pela não identificação exata com essas batalhas que teremos de travar.

O que o povo pede, exige e acredita poder reclamar “deles” é muitas vezes algo que “eles” objetivamente não podem controlar na dimensão percebida pelos eleitores. Esta é hoje uma das maiores fontes de distanciamento, algo que não se resume à promessa não cumprida, algo que passa por uma contrato mal percebido, mal nutrido e crescentemente condenando ao fracasso. E perante o desafio que temos pela frente, encontrar um difícil equilíbrio entre a mobilização para a mudança e o esclarecimento objetivo das barreiras que se têm de superar é fundamental. Ter a humildade de sublinhar até onde podemos mudar o mundo com os constrangimentos e adversários existentes e demonstrar exatamente de como precisamos de apoio para fazer a diferença, para conseguir ir além de tudo o que nos restringe, não é uma fraqueza, é um investimento no futuro, é uma aposta na responsabilização dos cidadãos e uma condição indispensável para uma definição correta de uma estratégia de sucesso. Seja ela de luta política convencional ou de guerrilha.
E falo a pensar tanto no português comum, como nas elites. Este trabalho político é relevante junto a todos os interlocutores ou públicos alvo. Desengane-se aquele que crê que a ignorância não afeta as elites, por exemplo.

Advogo que ao medo indigno aliado à destruição da autoestima por via de um discurso moralista, de um revisionismo e simplificação do que foi a nossa história coletiva recente em que se tem baseado a mensagem do atual governo e, em boa parte, de alguns governos nossos parceiros, devemos responder com a denuncia da mentira e do erro factual e com a dramatização em favor da ação, com a urgência em construir o momento seguinte do edifício europeu com uma visão clara do que pretendemos dever ser esse futuro.

Para conseguirmos fazer este caminho, temos de, naturalmente, como disse, denunciar os efeitos práticos das políticas seguidas e a sua insustentabilidade a prazo, enfrentando, por exemplo, a surfadela intelectualmente desonesta da descida das taxas de juro, mas também a evidência do que é e do que se prepara para ser o nosso mercado de trabalho. Enfrentando também a mistificação da reforma estrutural da economia portuguesa que sublinhe-se acredito estar em curso desde o início da década de 2000 mas uma velocidade penosa e insuficiente para ser motor seja do que for, face às restantes condicionantes que nos tolhem.

Quanto à evolução do emprego o que é hoje mais razoável admitir como perspetiva é esperar, no futuro próximo, um arrastar pelo fundo, com oscilações pontuais para cima e para baixo sem qualquer expectativa de abandonar taxas de desemprego reais acima dos dois dígitos ou sem abandonar o ingresso do clube dos exportadores líquidos de emigrantes.

Temos de, por outro lado, no âmbito mais estritamente interno, demonstrar politicamente como sabemos e queremos gerir melhor o dinheiro colocado pela comunidade ao dispor do Estado, ao seu serviço. Temos de sublinhar o que nos distingue nas políticas sociais, na educação, na saúde e no papel global do Estado. Temos de demonstrar que a exigência pelo uso escrupuloso e rigoroso dos bens públicos e a elevação ética dos nossos protagonistas e militantes, não é bandeira que nos seja estranha mas antes sim uma meta em permanente construção dentro do partido e na sua futura governação. E devemos fazê-lo de forma clara com impacto na vida interna do partido. Mas temos também de manter bem presente que será indispensável assegurar uma reserva de esperança nesta hora decisiva para o nosso futuro, a reserva que nasce de acreditar que é possível, de que será sempre possível desenhar uma alternativa melhor.

Estes meses que se seguem serão críticos para que se vocalize e batalhe pela Europa que queremos e serão também importantes para que a opinião pública perceba o que está em causa.

III

Há dias lia que no século XIX durante cerca de 70 anos foi possível uma sociedade registar um franco progresso tecnológico em simultâneo com um continuo aumento da desigualdade na qual os mais desfavorecidos se foram acomodando na sua miséria. Passou-se mais de meio século até que os salários vissem refletido no poder de compra os ganhos de rendimento gerados pela revolução industrial, até que os trabalhadores começassem a lutar pelos seus direitos de forma eficaz e a sociedade europeia nos países que estiveram na primeira linha de desenvolvimento começasse a assemelhar-se minimamente com o que viriam a ser os padrões do século XX.

É recorrente que o estrangeiro que olha para nós nestes três anos nos suba o rating à conta da nossa capacidade de sacrifício, nos elogie a maturidade democrática à conta de não termos ainda um espectro político-partidário completamente atomizado onde os partidos democráticos disputam os lugares cimeiros com forças extremistas. É frequente condoer-se com o desemprego insustentável. Pois eu digo-vos que, vindo de um credor, este tipo de elogios estará sempre disponível; vindo de um parceiro, a mensagem que esperarei ouvir não poderá ser esta.

Mesmo no seio de uma lógica penitencial, este já deveria ser o tempo de se concluir que provámos o nosso empenhamento com os compromissos coletivos que assumimos. Esta é a hora de exigir claramente que se equilibrem os pratos da balança, que ao sentido de dever corresponda a demonstração de solidariedade e a construção de uma verdadeira comunidade.

Termino dizendo que devemos batalhar até ao limite pelas reformas cruciais que têm de acontecer para completar a Zona Euro e a União Europeia, mas devemos também preparar-nos para o pior. Devemos preservar o pragmatismo e o sentido de responsabilidade para com os nossos concidadãos. Acredito que se o fizermos estaremos inclusive a reduzir a probabilidade de virmos a ter de adotar esse plano b pois estaremos mais livres para conquistar terreno nas batalhas que se avizinham. Ter no terreno os sensores que identifiquem se vamos ter um rumo digno e progressista ou se nos encaminhamos para 30, 40 ou 70 anos de miséria e dualidade é fundamental. Esse desfecho negativo, a suceder, não virá muito provavelmente sob a forma de um choque brutal, de uma revolução, virá sob a forma de uma panela em lume brando na qual estaremos enfiados e à qual se subirá lentamente a temperatura, sem que nos apercebamos até ao fim último e fatal. Basta que muito pouco mude, ou que mude como evolui e involuiu a União Bancária, por exemplo, para que esse tipo de destino seja muito provável.

Estamos a viver momentos históricos, com forças desiguais, cheios de ameaças. Perante isto só nos resta um caminho, protagonizar a mudança. Exigi-la, sem fraqueza ou qualquer sentido de menoridade. É a altura de nos darmos ao respeito e de demonstrarmos que há um caminho inclusivo, equilibrado para todos os Estados e fiel ao objetivos fundadores da União Europeia. Seria com esta inspiração política que eu tentaria desenhar uma política económica comum. É aqui que está o futuro da Europa, não na evolução das yields da dívida pública.

 

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