Em 25% vim daqui:

Foi órfão, criado pelos irmãos, analfabeto mas – dir-se-ia agora – empreendedor, na raia da beira, concelho de Penamacor. Depois de andar ao serviço dos mais velhos, de passar pelo que se passava na vida do campo, com a idade veio a vontade de emancipação. Uma pouca herança que de grande se dividiu por muitos. E um sonho, escapar à miséria, mostrar às gentes. Faltando o capital para reforçar o investimento catava-se minério, contrabandeava-se ou emigrava-se. Foi essencialmente um agricultor, homem que sabia dar valor ao seu torrão. Um típico homem da Beira cuja vida conheceu a tragédia de uma forma que não interessa aqui agora contar. Mas conto que não fez política, temeu a deus, quis que nenhum filho fosse analfabeto, ele, homem rude, com pouco tato, com inevitáveis tíques de se ter feito à força de si, percebeu que era fundamental estudar. Saber.
Apesar de não ser politizado, nunca entrou em bizarra contradição. Não simpatizava com o regime, do mesmo modo que não simpatizava com os vestígios feudais que imperavam, mas o regime em si era um lugar distante naquela terra perdida. O recuo ao passado raras vezes se fazia pela política mas quando acontecia surgia como uma época que era recordada mais vezes como um tempo que se vencera com ardil do que com qualquer vestígio de saudade. Nisso partilhava a recordação com todos os outros antigos conterrâneos que lhe conheci. Depois dos cravos haveriam de ser quase todos socialistas, de votar no partido do punho, muito apropriado para uma terra que balançava entre os vestígios do latifundio e uma cultura individualista da courela. Onde os pobres eram contratados à jorna, os ricos se afastavam progressivamente do que viam como um degredo e os remediados viviam numa corda bamba tão típica de quem depende da terra. Comunismo seria um excesso e esquecer o que era um senhor mandante tardaria.
O antes da revolução era recordado pelo que se tinha feito e revelado como um tempo onde a regra era que abrisse os olhos quem quisesse e que estudassem além do mínimo apenas quem pudesse. Mesmo que se quisesse, e poucos tinham a capacidade de perceber como era importante querer, era ainda preciso poder. E foi assim, numa formosa mas distante aldeia que, pelos sacrifícios que fez mais a sua mulher, pode. Criou três que foram até onde quiseram e querem. Faria hoje anos. 90.
Não lhe guardo um profundo afeto porque não era pessoa de grandes afeições… Hoje reconheço que sabia amar à sua maneira que, em rigor, é a única forma que se nos oferece, seja a quem for. Guardo-lhe a memória e a admiração. Deu sem dúvida um passo muito mais complicado do que qualquer um dos que lhe sucederam. Como um luxo recordo-o aqui, agora, assim, em horas que só poderia reprovar pois que quase cantam os galos a chamar para a jorna. Assim se foi fazendo Portugal. Viva o 25 de abril! Haja memória.

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