A política, os media, o país e o INE
Eis uma reflexão (finalmente!) de Sérgio Figueiredo na Sábado. Sem mais comentários:
"Caras e casos
Sábado(30-08-2007)Sérgio Figueiredo – Administrador da Fundação EDP
A democracia é um número
Um discreto ministro, recém-chegado a um Governo já em fim de ciclo, não conteve um desabafo, que ficou célebre, quando reagiu à divulgação de um indicador estatístico mais desfavorável: "É inadmissível que um instituto do Estado seja sistematicamente imparcial. É incompreensível que transmita a ideia de que a agricultura é um sector pobre. A administração pública não tem de transmitir essa ideia."
Esta gafe parecia monumental, porque revelava um ministro desinformado sobre a autonomia técnica do Instituto Nacional de Estatística (INE) – uma autonomia consagrada na lei. Na verdade nem gafe era. Apenas um raro momento de sinceridade, em que um governante disse em público o que a maioria pensa em privado.
Hoje a coisa está muito mais sofisticada: em vez de protestarem contra estatísticas incómodas, os governos preferem nomear dirigentes que não incomodam coisa alguma. Desapareceram os ministros a questionar o INE, simplesmente porque o INE não existe. Não por ter morrido aos pés de um PRACE qualquer, mas porque hibernou. Os ministros assim o quiseram. E os dirigentes nomeados também aceitaram. Esta direcção do INE, já lá vão quase dois anos, aceitou de livre e espontânea vontade ser manietada.
Não é, infelizmente, uma história nova no INE. E que bom seria se fosse uma história exclusiva do INE. Mas o INE não é uma instituição qualquer. Até Salazar, num discurso oficial em Outubro de 1929 que marcou o arranque da primeira grande reforma da actividade estatística nacional, sabia que estava a erguer "uma das maiores e mais interessantes obras da ditadura".
Pois o sistema estatístico nacional, tal como a liberdade de imprensa, também é um pilar fundamental da democracia. Os jornalistas são, por natureza, muito sensíveis ao ambiente que, sim ou não, permite que investiguem, editem e publiquem notícias e opiniões. Mas têm revelado uma absoluta apatia perante este eclipse de uma instituição que deve ir além do mero ritual: respeitar o calendário, despejar números a cru e divulgar indicadores sem conteúdo.
Pode colocar a questão – mas o INE não continua a produzir estatística? Claro – e, não tenho dúvida, respeitando os mais elementares princípios de independência técnica e do segredo estatístico. Nem sequer é na qualidade da "produção" dos números que o INE presta hoje um serviço à sociedade pior do que no passado – o que era mau, continua mau; e as melhores estatísticas preservam a reputação. Mas se devolver a pergunta – lembra-se da última vez que o INE contribuiu para enriquecer o debate nacional? – nem os seus actuais responsáveis ousarão citar um caso.
O INE não deve ser a favor ou contra o Governo. Não tem que ter opiniões sobre opções de natureza política. Mas tem o dever de explicar o significado das estatísticas que produz. O INE não pode demitir-se da capacidade de as interpretar, de afirmar (e não apenas insinuar) o que certos indicadores mostram, qual a realidade que reflectem. O País é pobre na reflexão e o INE tem responsabilidades nisso.
Não temos os institutos independentes de conjuntura, como os "5 sábios" da Alemanha. Não temos um instituto de estatística com o poder e a influência do francês. A análise económica independente em Portugal nasce e morre no banco central – o que é perverso e sobretudo limitado.
O País é pobre em instituições credíveis, isentas, independentes das várias formas de poder e, por conseguinte, merecedoras da confiança e do respeito da sociedade civil. Nos seus mais de 70 anos de História, o INE já se afirmou como uma dessas instituições. Mesmo na ditadura, ao desafiar Salazar quando este proibiu a taxa de analfabetismo (superior a 40%) apurada no Censo de 1940. Ou quando a PIDE fez visitas regulares às instalações do Instituto, suspendendo publicações e prendendo técnicos superiores.
Há muito que o problema do INE não e um problema de estatística. É um problema de política. Todos os políticos sabem disso. Mas nenhum tem a vontade ou a capacidade de lhe dar a devida importância. Uma honradíssima excepção: Nuno Morais Sarmento, então ministro da tutela. O único que abriu os portões do INE a uma auditoria externa, comandada por uma dupla que, durante quatro décadas, dirigiu um dos mais conceituados INEs a nível internacional, o canadiano, e acumulou vasta experiência na avaliação de vários sistemas de estatística do mundo.
Este trabalho competente, entre centenas de alterações propostas, concluía que não há INE independente enquanto o seu presidente não tiver um estatuto de efectiva independência – como os reguladores. No Portugal de 2007, não há PIDE, não há proibição explícita de indicadores ou publicações suspensas. A democracia encarregou- -se entretanto de as neutralizar."
August 30th, 2007 at 5:23 pm
Como mentir com as estatísticas é um processo muito usual na economia Portuguesa, e talve na dos outros países. Existem muitas empresas que fazem artificios com os números, de modo a compor uma realidade cor-de-rosa, quando ela é cinzenta, senão mesmo preta (E não me estou a referir às declarações de impostos).
Quem entra por este modo de actuação caminha para o desastre.
Um governo de um país que queira que o seu INE lhe dê uma realidade cor-de-rosa, é um governo que está à beira do abismo e quer, à viva força, “dar um passo em frente“.
August 30th, 2007 at 7:10 pm
Sempre estive curioso do destino de SF após a saída do JNegócios. Está bem instalado com tacho oferecidp por quem ele muito bajulou naquelas páginas…
September 4th, 2007 at 2:44 pm
Em qualquer parte do mundo os INE são sempre considerados os parentes pobres da análise estatística quando comparados com os bancos centrais. De facto Sérgio Figueiredo tem razão quando diz que o probema do INE é de natureza política e de falta de independência e que a análise económica reside principalmente no BdP. Mas desconhece outros aspectos que invoca. Nomeadamente, o “competente” trabalho dos peritos canadianos!! Competente? Em quê? Por recomendar aplicar as mesmas ideias de autonomia já discutidas e amplamente recomendadas pelo Conselho Superior de Estatística “engavetadas” ao longo de muitos anos porque os sucessivos governos nunca quiseram aplicar? Por propôr uma re-organização dos serviços só possível com uma cultura canadiana(e mesma essa??) e nunca aplicada com sucesso em nenhuma parte do mundo? Por ter sido elaborado por um senhor de nome Jacob Ryten, fluente em Português, e cuja acção neste domínio e em outros como a comparação internacional de preços é considerado de duvidosa qualidade ao ponto de ser colocado ao ridículo em muitos foruns internacionais sobre a matéria?(A título de exemplo veja-se o que este senhor anda a fazer com a coordenação deste exercício na América Latina ou que sugestões deu para a comparação internacional de preços no Brasil? Nem um estudante da matéria em início de carreira ousaria fazer! De certeza que SF não conhece o relatório nem as recomendações dos conselhos superiores de estatítica (o governo também lá está) falar e nem conhece bem o que se tem passado no INE nos útimos anos. Actualmente, com uma direcção inoperante e totalmente manietada (aqui tem razão); com uma desarticulação total em matéria de estratégia organizativa e sobretudo do que se vai ouvindo nos últimos tempos de “redução” de complementos salariais em resultado de um processo de re-estruturação iniciado em Maio. A independência estatítica só é possível com mais recursos financeiros e sobretudo vontade política. Não há nem uma nem outra e não havendo a qualidade estatítica do INE será sempre duvidosa e o BdP continuará a ser a única referência, para mal de todos nós. O debate estatístico e económico não existe a nenhum nível em Portugal (à semelhança de outras áreas) e a maioria dos jornalistas pouco ajuda!
September 4th, 2007 at 3:00 pm
Obrigado pelos comentários.
Tundra: parece-me que falhou em comentar o essencial do artigo. Opinião minha naturalemente.
Estepe: Caro(a) colega, sobre os canadianos e o seu trabalho têm o mérito (que será só em parte deles) de sublinharem o que deveria ser banal, estar interiorizado e implementado. O relatório como instrumento parece-me razoável. Não seria por aí que teriamos impecilho para uma mudança por um bom caminho. Fica a crítica de que se gastou dinheiro desnecessariamente, mas também isso acaba por ser outra história. Quanto ao resto (note que não escrevo sob anonimato), reservo opinião para o interior da casa se me derem oportunidade de dizer e de fazer.
September 7th, 2007 at 11:10 am
[…] A propósito do INE deixo uma sugestão de leitura para um estimulante artigo de Sérgio Figueiredo que destaquei há dias noutra paragem, no post "A política, os media, o país e o INE". […]