Andava nisto há meses, mirrando de saudades do sonho que ali a levara.

Nem todos os viajantes encontram a felicidade.” Esta máxima que ouvira, acompanhada pelo bandoleon, reverberava-lhe na cabeça sempre que sentia o cheiro a maresia em cada final de tarde.  Um sonho que se fizera de milhares de quilómetros, dezenas de camas, meia dúzia de línguas e quatro mares. Fazer a estatística era também algo inteiramente novo na viagem. Mau sinal…

Navio na névoaTinha uma vaga ideia de no início se convencer: regressaria!

Mas regressaria à família? Regressaria ao país, à vida sem viagens? Retornaria à contemplação das várias matizes da nuvem de smog? Recolheria à serra? Porque haveria de regressar?

Olhou para as mãos maltratadas pela água das lides com que ganhava para pagar o quarto da pensão. Ali, no fim de tarde, expostas à maresia, as mãos cobriam-se de branco, uma brancura áspera de pele cortada e endurecia. Uma brancura impossível de esconder quando impulsivamente tentava refugiar uma mão na outra. Nesse gesto sentia dois tocos mal definidos espetando um no outro as duras limalhas de pele retorcida e morta que se elevavam sobre o que restava colado à carne. A minha pele. A minha casa de banho, os meus cremes de beleza, a minha banheira, os meus sais de banho de fabrico caseiro. A lembrança de andar enrodilhada nas minhas toalhas… Foram estas memórias que a acordaram para outro sonho, que lhe permitiram encontrar uma razão, a razão que faltava para que se atirasse ao porto e procurasse navio.

Lá longe, em casa, faltava-lhe um amor à espera que nunca tivera; aqui, na viagem, faltava-lhe já a vontade de resgatar os cenários onde nunca vivera. Sobrava-lhe a razão que acautelara ao fazer viajar consigo as chaves da sua casa; sempre aninhadas num pequeno bolso interior da variável bagagem de viagem.

Hoje mesmo zarparia pelo Atlântico para a última etapa rumo ao prazer da água quente perfumada com manjericos.

Nem todos os viajantes encontram a felicidade e nem todos viajam para a encontrar. Todos tentam chegar lá longe, à outra margem.

 

(Em memória de um grande português, para o que interessa anónimo, imigrante, que morreu hoje, vítima de cancro, a milhares de quilómetros de uma família que conquistou com amor, contra preconceitos e tradições, literalmente traído quando havia já decidido dar por finda a dura lavra e fazer-se ao porto para rumar definitivamente a casa.)

 

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