" A razão, no alvor moderno, não foi capaz de enunciar-se de modo autónomo. Ao invés, preferiu entrar em cena contrapondo-se a algo que baptizou como sendo caduco e ultrapassado. Esse choque, geralmente caracterizado como o choque entre “mito” e “logos”, terá sido mesmo real? Hans Blumenberg sempre torceu o nariz a essa pergunta e preferiu, por isso mesmo, compreender o mito como algo que teria sempre sobrevivido entre nós. (…)" in Miniscente

Acho que nos damos bem com algumas bactérias, pelo menos enquanto o nosso organismo está equilibrado. Convivemos com elas, por vezes em simbiose; apenas quando algo falha no nosso organismo elas se transformam em ameaça, invadindo um espaço vulnerável. Brinco às anatomias…

Tempos houve em que o mito era uma bactéria com a qual vivíamos em simbiose. Indispensável, fundadora, possessiva. Depois, nos sítios onde vingou o positivismo, a ciência venceu, libertando-nos, e reclamou a extinção tendencial do mito e da sua prima religião. Denunciou-se a subjectividade, desmascarou-se o mito.

Mas o mito quando muito aceitou uma mudança de regime, mantendo um belo reino. Será agora um vírus, infiltrado, cheio de interruptores que num ápice o levam do sono à condição do passado, sempre fundador, sempre possessivo, inevitável.

Há sociedades mais racionalistas onde se prefere pensar que o mito está morto, que se ergueram em cima das suas ruínas – não aparece no exame bacteriológico, estamos puros!

Fez-se da morte do mito um ritual de passagem, o ponto inicial do mapa rumo ao cimo da montanha. Mas ele anda por aí, ora disfarçado de cristal inerte, ora exuberante na forma como captura as características do suposto inimigo em seu proveito. No exemplo extremado, a ciência mistificou-se, chegando a patrocinar uma religião.

O mito obriga-nos a resvalar, a recomeçar o sonho. Obriga-nos a ter de responder se estaremos mesmo a subir a ladeira? Ou até, se será esse o destino ideal que devemos procurar. Talvez ganhássemos em permanecer por um tempo num planalto, o tempo suficiente para percebermos quantos mitos nos fazem ainda andar em círculos, diariamente, sem darmos por isso. E percebermos, quem sabe, se do mito resultam mais do que círculos- este meio, este mesmo meio, é um dos seus aliados predilectos do momento.

Nem com a racionalização do mistério o mito morreu… Uma vez li que o mito era a primeira etapa do conhecimento da realidade. E deve ser verdade… Mas pergunto se isso implica que o mito seja descartável na segunda? E agora a parábola/alegoria: depois do fogo tomar a floresta poucos dirão que é a mesma floresta que renasce; alguém está verdadeiramente seguro que das ruínas do mito resultou a sua erradicação? O mito ruiu deveras? Ou será que houve apenas um fogo na floresta?

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