I

Rumámos à Baixa já a noite se instalara. Tal como o dia, seguia amena.

O frenesim matinal, ruidoso, adicionado do atípico som coordenado das badaladas de todos os sinos da cidade, deu lugar à noite calma, com pouco trânsito e transeuntes.

Entre a saída de metro da Praça da Figueira e a Igreja de São Nicolau, cruzámo-nos por alguns casais isolados, quase todos italianos, nitidamente em turismo pela cidade, ora espreitando algum detalhe nas águas furtadas da baixa pombalina, ora namorando as montras da Rua Augusta.

Na Rua da Prata, junto da renovada Igreja de São Nicolau separámo-nos, cada um seguiu para o seu templo. Ela para uma luminosa e muito concorrida celebração católica – seguramente a mais concorrida missa do dia. Eu para uma cave apinhada de ácaros, livros, Cd’s e DVD’s que partilhavam o espaço com alguns esporádicos lisboetas, turistas e figuras públicas de aquém e além-mar.

II

No caminho para a “oração” dei por mim a procurar detalhes enquanto passava por alguns quarteirões da baixa, tentando adivinhar renovações, alterações arquitectónicas, justificações antigas para pormenores inexplicáveis aos olhos modernos. Tentei adivinhar pedaços da história dos últimos 250 anos da Baixa pombalina, como se hoje, neste 250º aniversário do terramoto, estivéssemos mais próximos do dia da reconstrução, como se toda a baixa recuperasse a novidade das obras recém inauguradas.

O cataclismo das milhares de mortes e da múltipla destruição que sofreu a cidade, bem como, a sua consciencialização mais viva, patrocinada pela comemoração colectiva em torno do sempre sedutor aniversário redondo do sistema decimal, desafia-me a olhar a cidade de uma outra forma. Eu sou um dos sobreviventes de Lisboa. Se assim for, esta cidade é um pouco mais minha do que era ontem? O que é ser-se lisboeta? O que é ser a capital de um país?

Ia eu efabulando respostas, enquanto caminhava lentamente sob a generosa iluminação da baixa, recentemente recuperada, quando uma curiosa dupla me interpela e se intromete… Que lugar nestas perguntas para a estranha dupla de polacos maltrapilhos que encontrei vendendo a história da sua má sorte de peregrinos de Fátima e de pé descalço, privados de documentos por uma mão leve, eternamente há apenas 5 dias na cidade, sem dinheiro para pagar abrigo?

III

Recordei que além de nomes das Ruas, algumas placas espalhadas pelo traçado rectilíneo e perpendicular da baixa criavam uma outra toponímia baseada em Divisões numeradas, algo familiar com o que sei ter sido feito então e depois no admirável novo mundo.

Eu, Beirão de pelo menos três gerações, sem memória para mais, nascido e não criado em Lisboa, não me encanto mais pela cidade do que pelo campo e, contudo, não preferiria outra condição que não esta, dividido entre aquilo com que uno os dias da minha vida.

IV

Termino a noite ao computador, entrando pelo novo dia, com mais livros e histórias para ler entre cá e lá, escapando, até poder, ao fim dos meus dias.

Lisboa, 1/2 de Novembro de 2005 

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