As palavras estão lá, guardadas, catalogadas, a sua presença ocupa espaço, sente-se-lhes o peso. No entanto estão isoladas, desarticuladas, esperando em fileiras como peões. Serão palavras?
Dizem-se entre dois fôlegos mas não se distinguem do ritmo involuntário dos pulmões. É preciso escrevê-las ou ouvi-las. É então que a escrita, ou esta outra fala, se apresenta como única saída. Saída de uma noite negra, inexorável, feita de tempo mas sem memória. Uma noite que nos atrai como um sono sem sonho, da qual não se desperta, nem para morrer.

Há uma outra noite que disputa o nosso tempo, que seduz pelo enfeite das estrelas e pelo chilrear tímido dos primeiros pardais na madrugada. Não é possível evitar esta noite, não é possível esquecê-la, mas é possível não a descobrir.
Lá chegando têm sorte os que dela se enamoram como a lágrima pela chuva. Apenas nesta noite se esquece, apenas nesta noite se (re)vive. A noite que nos surpreende como um agasalho leve no fim do dia, que nos cuida dos olhos cansados, que nos embala rumo à madrugada com um aconchego maternal. Apenas na noite tudo pode ser novo, outra vez. O cheiro que nos transporta para outras noites de palavras ou silêncios; a voz que nunca ouvimos tão bela; a brisa fresca que ficou perdida no frenesim do dia.

Nem as palavras fazem da noite aquilo que ela não é, mas é também por elas que melhor erramos pelas noites que sonhamos.

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* A noite, o que é? vai já no 54º capítulo, agora n’A Origem das Espécies. O Francisco que me perdoe esta variação. O que por lá escreve tem muito pouco a ver com este enunciado de banalidades, mas assim foi esta noite.

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