(Continuação daqui)

5.
Deixemos o rapaz e a rapariga que já não nos interessam, agora falo eu.
O que é um livro bonito? Este é um livro bonito. Talvez saído de um Jardim de Inverno, igualmente cativante quanto raro. Uma sedução que se completa com a leitura, é certo, mas que avança de imediato patrocinada pelo caleidoscópio de tons de verde.
A imagem que ocupa metade da capa, a pedir adjectivos gastos mas justos, exibe uma floresta luxuriante que invade um resto de rio, navegado por um escaler motorizado rumo a uma viagem improvável, finisterra.
Esqueço o cheiro de livro novo e passo ao tacto, à textura nervosa do papel, mais suave sobre a imagem, mais áspera fora desta; ao relevo evidente das letras plastificadas que formam o título, à minúscula fotografia do autor que surge como um detalhe, no centro, mas à margem, bem à direita, quase a sair do livro.
Gostava de ter algo para escrever só para poder ter pretexto para que fizessem um livro assim.

6.
Qual é a vida de um livro quando chega às mãos de um leitor?
Este livro verde, prometida que está a volta ao mundo no texto da contra-capa, manteve-se subterrâneo nos seus primeiros instantes: da prateleira na cave da loja seguiu para as entranhas da cidade e foi desflorado na linha verde, entre o Rossio e o Intendente. Fez-se aos Anjos e conheceu o baptismo de noite em Arroios, nos Arroios.
Umas escassas gotas que escorreram do tecto da estação de metropolitano, já à saída, caíram-lhe na superfície plastificada escorrendo ao longo do fio de rio representado. Uma manga da camisa em rápida afago manteve-o imaculado…

7.
A frase “O romance da solidão portuguesaâ€? acompanha o título. Um artigo tão definido! Temos autor determinado, sublinhado o risco do ridículo de peito aberto. Artigo definido e contudo… Começam as dúvidas do leitor, as interpretações. Prossigam as palavras!
As primeiras páginas. Quantos críticos literários ficaram por estas? Quantos somaram mais umas quantas próximo do final e se salvaram com o inestimável resumo da badana ou da contra-capa? Quantos leitores se decidem nas primeiras trinta, quarenta páginas? Quantos deixaram o livro na prateleira da loja por ser demasiado? Demasiado pequeno, demasiado grande, demasiado caro, demasiado feio?
Aproximo-me do papel de um auxiliar de investigação. “Relato factos, não critico livrosâ€? poderia dizer, Tenente Sem Sal.
Em quarenta e duas páginas, as primeiras páginas, encontramos a madrugada, uma das muitas noites que passou pelo Aviz, uma suave promessa erótica em Ã?frica, uma breve antologia do Futebol Clube do Porto na suposta Invicta, um crime e o seu mistério, o início das singularidades de um investigador Jaime Ramos, de um adjunto Isaltino, um auxiliar antropológico sobre a vida privada contemporânea – na vertente materialista -, a promessa de viagens e uma Rosa.
O livro por aqui anda, bem verdinho, ainda, passeando por Lisboa, ao sol, à chuva e ao vento, ganhando raízes e folhas, digno da primavera, tomado ou não da solidão portuguesa.
O primeiro livro de 2005.

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* “Longe de Manaus” é o mais recente livro de Francisco José Viegas, editado pelas Edições Asa em Abril de 2005. Um livro que não tem quase nada a ver com o que aqui se escreve e escreverá nos próximos dias.
Uma entrevista ao autor (sobre este livro) pode ser lida aqui.

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