(…) Não há lei que possa declarar um homem livre, se ele próprio não está disposto a bater-se pela liberdade que lhe deram e a pagar o preço que ela exige – sempre. (…)

Miguel Sousa Tavares, hoje, no Público

Disponível em anexo ou, mais justamente, no site do jornal. A não perder.

O Preço da Liberdade
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 08 de Outubro de 2004

Há várias maneiras de classificar as pessoas. Um amigo meu costuma classificá-las entre as que são importantes e as que o não são – sendo que importante, aqui, significa apenas, e é muito, aquilo que merece a nossa importância, a nossa atenção, e o que o não merece: parece-me, todavia, um critério curto. Uma amiga minha gosta de as classificar, simplesmente, entre boas e más pessoas – bons e maus caracteres: parece-me um critério que faz sentido, mas que abrange apenas o domínio das relações pessoais. Mas, se pretendemos classificar as pessoas pelo critério da cidadania, a classificação que sempre tive como fundamental é a que distingue os homens livres dos capachos.

O grande mal português é que temos, verdadeiramente, poucos homens livres. Pouca gente, poucos cidadãos, que estejam dispostos a viver a sua vida, a construir o seu caminho, sem terem de prestar vassalagem a várias formas de poder. Os arquitectos não são livres, porque dependem dos interesses económicos do dono da obra. Os médicos não são livres, porque, regra geral, querem ser simultaneamente profissionais liberais e assalariados do Estado. Os advogados de sucesso não são livres, porque dependem da consultadoria dos governos e do tráfico de influências entre os negócios, o poder e o patrocínio. Os empresários não são livres, porque dependem dos subsídios, das isenções fiscais e da atenção do governo nos concursos públicos. Os intelectuais não são livres, porque estão quase sempre dependentes de empregos, bolsas ou subsídios públicos, os quais acabam inevitavelmente por pagar com simples fretes de propaganda partidária. Os jornalistas, quase todos, não são livres, porque dependem do pequeno chefe, o qual reporta ao editor principal, o qual deve satisfações ao proprietário, o qual tem de prestar atenção aos humores e sensibilidades do poder da hora.

Portugal não é, nunca foi, um país de homens livres, de homens verdadeiramente amantes da liberdade, para quem a liberdade seja tão importante como poder respirar. A grande e púdica mentira em que temos vivido nos últimos trinta anos é a de ter acreditado, ou fingido acreditar, que no dia 26 de Abril de 1974 éramos todos pela liberdade. Desgraçadamente, nesse longínquo dia, não era “a poesia que estava na rua”, mas sim a hipocrisia. A liberdade não se encontra ao virar da esquina – conquista-se, merece-se e alcança-se, por si próprio e individualmente, com riscos e com perdas, e não a coberto da protecção fácil das multidões ou das leis.

Não há lei que possa declarar um homem livre, se ele próprio não está disposto a bater-se pela liberdade que lhe deram e a pagar o preço que ela exige – sempre.

Pagamos, e temos pago, bem caro o preço inverso: o preço de não sermos e nunca havermos sido uma nação de cidadãos amantes da liberdade – não a de cada um, individualmente, mas a de todos. O preço de termos empresários que vivem do favor do Estado, sindicatos que vivem do abrigo partidário, intelectuais que vivem das migalhas do orçamento da cultura. O preço de sermos dependentes, tementes e subservientes. As nações de homens livres prosperam; as nações de gente subserviente definham: cada vez estamos mais próximos do México ou da Madeira e cada vez mais distantes da Espanha ou da Inglaterra. Temos, exacta e friamente, aquilo que merecemos.

Por ora, não vou perder-me nos sórdidos detalhes desta semana portuguesa, em que de repente foi como se toda a podridão escondida tivesse vindo à superfície. Vi vermes rastejando em directo televisivo, vi o medo, a subserviência, o preço, estampado na cara de gente porventura boa, ouvi razões e argumentos de estarrecer, conheci factos e circunstâncias que nem nos meus mais negros momentos de descrença julguei serem possíveis nesta desilusão a que chamamos Portugal. Por ora, contenho-me, porque o nojo e a revolta são ainda tão presentes que ofuscam a lucidez e a serenidade que certas coisas exigem absolutamente.. Mas quem me lê sabe que apenas preciso de tempo e de recuo – como quem recua perante um quadro para melhor o ver.

Aliás, impõe-se a distância necessária para tentar entender que país é este, que cidadãos são estes e o que verdadeiramente os preocupa: a vaca a ser mungida na Quinta das Celebridades ou o Governo a ser mungido na Quinta dos Influentes?

2. Há dois anos atrás, ingenuamente, aceitei fazer parte de uma comissão nomeada pelo anterior Governo e cuja missão principal era definir como deveria funcionar a televisão pública, com que meios e financiamentos e a que regras deveria obedecer. Como eu, várias outras pessoas, que nada quiseram nem receberam em troca, sacrificaram muito dos seus tempos úteis e livres, para, dentro do prazo fixado, dotar o Governo do resultado de uma reflexão, em forma de propostas concretas, que reunia o maior consenso possível entre gente de diversas proveniências e ideias. Recebido o trabalho e fingindo-se escudado nas conclusões da sua “comissão independente”, o ministro Morais Sarmento meteu as conclusões ao bolso e, até hoje, nem um obrigado nos disse.

Entre as conclusões que ele fez desaparecer instantaneamente na atmosfera, estava uma que recomendava que as regras editoriais e deontológicas estabelecidas para o funcionamento da televisão pública tivessem, obviamente, extensão a todo o território nacional, incluindo Açores e Madeira. Porque, tanto quanto era do nosso conhecimento, nas regiões autónomas vigora a mesma Constituição, o mesmo regime democrático e o mesmo Estado.

Porém, a solução adoptada para a Madeira foi exactamente a oposta e que veio ao encontro das antigas e persistentes exigências do soba local: a RTP-Madeira foi dada de bandeja ao dr. Jardim, aí vigorando, como no resto da vida pública local, uma concepção de liberdade de informação que se confunde com aquela em que o dr. Jardim aprendeu a fazer jornalismo, no tempo do partido único, da censura e da ditadura. E a coisa seguiu assim, sem escândalo de maior. Esta semana, porém, a sem-vergonha do regime madeirense chegou ao extremo de o PSD-Madeira (um eufemismo do dr. Jardim) protestar oficialmente pelo facto de a RTP nacional ter enviado equipas de reportagem à Madeira para cobrirem (para o continente, exclusivamente) as eleições locais – o que, segundo eles, constitui um “insulto à alta capacidade dos profissionais da RTP-Madeira”. E mais, indignaram-se eles com o facto de os jornalistas idos de Lisboa “se terem instalado num hotel”, a partir do qual “transmitem para Lisboa aquilo que em segredo montam, com máquinas que trouxeram e aí colocaram”. Por mais que puxe pela memória, só consigo lembrar-me de coisa semelhante comigo ocorrida na antiga Roménia de Ceausescu. O PSD-Madeira é hoje o único regime em toda a Europa que considera um insulto e uma ameaça a presença de jornalistas “estrangeiros” a reportarem para fora como funciona o seu regime.

Será isto, pergunto, “o regular funcionamento das instituições democráticas”, tão caro ao Presidente da República? Ou a excepção democrática madeirense já está definitivamente assumida como coisa banal e inevitável?

Jornalista

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