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Um manual de interpelações a candidatos ao poder político.

Entrevista com Silva Lopes: Não Se Vê Nada Que nos Possa Ajudar a Sair da Recessão
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES E GRAÇA FRANCO (RR), fotos de Miguel Madeira
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004

Economista, ex-ministro das Finanças e ex-governador do Banco de Portugal, um dos homens que entre 74 e 77 evitaram que o país entrasse em bancarrota, Silva Lopes é hoje presidente do Montepio Geral. É uma das vozes mais respeitadas entre os economistas portugueses e as suas opiniões são conhecidas – e temidas – pela sua independência e frontalidade. Durante perto de uma hora, foi com que vamos conversámos para o programa “Diga Lá Excelência”, do PÚBLICO e da Rádio Renascença e com transmissão na “Dois”.

P. РNos ̼ltimos oito anos o nosso PIB per capita aproximou-se dois pontos da m̩dia europeia (passou de 73 para 75 porcento da m̩dia da UE). Entretanto a Espanha e a Gr̩cia avan̤aram oito pontos e a Irlanda aumentou 32 pontos. O que explica este nosso fracasso relativo?
R. – Porque desde a década de 60 que o ritmo de crescimento da economia portuguesa tem vindo a baixar. Essa década foi a década de ouro – nunca desde D. Afonso Henriques tínhamos crescido tanto.

P. – Mas esse período também foi um período de ouro da economia europeia…
R. – É verdade, mas nós crescemos mais. Aliás, nos últimos 50 anos, tirando a Irlanda, nenhum país cresceu tanto como nós. O problema é que o ritmo de crescimento tem vindo a descer. A economia tem perspectivas de evolução a longo prazo mas também tem períodos de cíclicos de crises – em Portugal temos tido crises mais ou menos de dez em dez anos e a que acabamos de viver foi mesmo a segunda pior dos últimos 50 anos. Mas depois das crises vem regra geral um período de crescimento mais forte. Ora o problema é que se saímos crise de 82/84 quando os preços do petróleo baixaram e de 93/94 por causa da baixa das taxas de juro, desta vez não se vê nada que nos possa ajudar a sair da recessão.

P. – Para este ano já se prevê algum crescimento, na casa de um por cento, em boa parte atribuível ao Euro 2004 – o que é irrepetível – e, para mais deverá ser um crescimento baseado no consumo…
R. – Ora esse é que é o problema. Se tivéssemos crescido porque aumentou a nossa capacidade produtiva e a nossa capacidade competitiva, estávamos no bom caminho. Mas olhando para o melhor trimestre, o segundo trimestre que foi o do Euro, o que vemos é que tivemos um crescimento do PIB de 1,5 por cento e dos gastos de 2,7. Esta diferença de 1,2 por cento significa endividamento externo.

P. – Foi desperdício? Ou foi investimento?
R. – Há muito investimento que é desperdício. Já não quero falar da estafada questão dos estádios, mas há, por exemplo, no centro do país, três grandes hospitais à distância de 40 km uns dos outros apenas porque cada cidade queria o seu hospital.

P. – Está a falar de investimentos públicos. E no investimento privado também não há desperdício?
R. – Claro que há. E posso dar um exemplo: neste momento as famílias portuguesas são, em toda a Europa, as que têm mais casas secundárias, o que não deixa de ser estranho quando somos os mais pobres. Ora interrogo-me se comprar casas secundárias para as utilizar poucos dias por ano será o mais racional. Bem sei que é uma escolha dos consumidores, mas…

P. – …continuamos a ter de crescer. O ministro das Finanças veio dizer ao país que acabou a obsessão com o défice e que a prioridade vai ser o crescimento. O que é um Governo pode fazer para estimular o crescimento?
R. – Quando falamos em crescimento podemos olhar para o gasto ou podemos olhar para o aumento da capacidade concorrencial. Quando aumentamos o gasto, empurramos o crescimento do PIB porque isso põe dinheiro no bolso das pessoas e estas podem comprar mais serviços. Mas há um problema: é que se a maioria desse gasto estimula a produção interna, boa parte dele vai para novas importações.

P. – No primeiro semestre deste ano o saldo comercial com o estrangeiro já se agravou em 20 por cento…
R. – Exactamente. A curto prazo, aumentando um pouco o endividamento, podemos sustentar assim o crescimento. A longo prazo é que não: não podemos viver assim sempre, temos de desenvolver capacidade produtiva. Ora aí as coisas correm mal.

P. – Mas esse é um dilema de todo o mundo desenvolvido, que está a perder capacidade produtiva para outras economias. A França, a Alemanha, os Estados Unidos…
R. – Pois é, e agora é que podem falar de meu pessimismo. O Mundo está provavelmente perante uma ameaça como nunca houve: a ameaça da China e da Ã?ndia.

P. – O Mundo ou o Ocidente?
R. – O Ocidente, claro, para eles tem sido bom mas também correm alguns riscos. Veja que os chineses, em meu entender, como recebem em dólares que vão acabar por se desvalorizar as suas exportações para os Estados Unidos, em parte não estão a vender, estão a oferecer. Isto para além de financiarem a colossal dívida dos EUA. Claro que isso pode durar muitos anos, e já li economistas americanos que defendem que falam em 20 ou 30 anos porque os chineses têm interesse em criar uma base industrial e em atrair investimento estrangeiro e novas tecnologias.

P. – Ora é essa base industrial que a Alemanha tem dificuldades em manter e Portugal não consegue construir…
R. – O problema é que a China vai roubar isto tudo. Vejam os têxteis, mas vejam também as empresas informáticas, as de metalomecânica… Isto é um choque de comércio livre como o Mundo não teve até agora. Como todos os economistas sou a favor do comércio livre, mas o que se passa é brutal.

P. РMesmo que fosse contra o com̩rcio livre haveria alguma coisa que pudesse fazer contra ele?
R. – Podia voltar ao proteccionismo, mas seria um desastre.

P. – Ainda esta semana, no “Washington Post”, um economista com o renome de Samuelson, dizia que os governos têm muito poucos instrumentos para influenciarem o crescimento…
R. – É verdade, porque os Governos abdicaram desses instrumentos, mas podem voltar a tê-los. Se é verdade que o proteccionismo seria mau, também é verdade que há diferenças entre as aproximações mais liberais e as mais intervencionistas. Eu, por exemplo, não compreendo que o Mundo tolere os paraísos fiscais. E não haver mais colaboração fiscal está a dar cabo do Mundo inteiro.

P. – Mas até a própria Europa tolera que um dos seus membros seja um paraíso fiscal, o Luxemburgo…
R. – Pela simples razão que o dinheiro que não vai para o Luxemburgo vai para as ilhas Caimão ou para a Suíça. Portanto, teremos problemas enquanto não se acabar a sério com os paraísos fiscais, o que não está na mão de Portugal, talvez estivesse um pouco na mão da Europa, mas ainda faltam os Estados Unidos. E no G7, onde isso se poderia resolver, a verdade é que vários países se mostram interessados na sua manutenção, talvez por causa da influência política daqueles que deles beneficiam.

Só as Empresas Abertas à Concorrência Internacional Deviam Receber Incentivos
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004

Sem apresentar uma receita para o crescimento, Silva Lopes sublinha a necessidade de haver mais concorrência e considera que o peso dos salários dos funcionários públicos é excessivo e estes gozam de privilégios socialmente injustos face aos do sector privado.

P. – Bagão Félix disse que pretende reduzir os benefícios fiscais que a banca, por exemplo, tira dos “off-shore”. Como é que vai conseguir fazer isso?
R. – Não conheço bem os pormenores jurídicos, não sei como é que se resolve o problema, e reconheço que se os bancos deixarem de beneficiar da zona franca da Madeira podem levar o dinheiro para outros paraísos fiscais. Daí que esteja de acordo com o objectivo do ministro mas tenha algumas dúvidas sobre como é que vai conseguir concretizá-lo. Há casos que não se resolvem sem ser à escala mundial… E o resultado é que na prática não temos soberania fiscal, o que é muito grave porque pode faltar dinheiro para sustentar o estado de bem-estar.

P. – Mesmo sem a total soberania fiscal, que modos há de fomentar o crescimento?
R. – Esse tema é fundamental se pensarmos que, tomando períodos que diluam os ciclos recessivos, o nosso crescimento passou de 6,4 por cento na década de 60 para 1,9 nos últimos quatro anos e tem vindo sempre a descer. Ora 1,9 por cento já é abaixo da média europeia. Todos os anos os economistas escrevem milhares de páginas sobre as causas do crescimento e a verdade é que não sabemos muito bem quais são. Muitos falam de investir ou de fomentar o investimento, nomeadamente em algumas áreas…

P. – Isso seria o tal “Estado estratega”?
R. – Não sei, até porque as ideias clássicas de que podia favorecer, ou apostar, na indústria química, ou nos têxteis, isto é, ter uma política industrial, estão hoje em desuso porque se percebeu que o Estado não tem capacidade para saber quais são os sectores de futuro. Mesmo assim há incentivos que se podem dar, no quadro da UE, mas só os daria a sectores abertos à concorrência externa. Os que têm o mercado interno garantido não levariam incentivos nenhuns. Infelizmente conceder esses incentivos não é fácil e mesmo se o sector industrial até beneficiou do PEDIP isso não impediu que o nos está a suceder.

P. РPorque estamos a ficar sem ind̼stria?
R. – Estamos. Se desaparecesse o têxtil e o calçado e aparecessem coisas na área das tecnologias, seria óptimo. Só que isso não sucede. E porquê? Em parte por causa da China, da Ã?ndia, dos países de Leste que atraem os grandes investimentos, mas também porque os grandes grupos económicos, quase todos, trocaram a indústria pelos bancos, pelos centros comerciais, pelo imobiliário. Também por isso é que era contra a política de baixar o IRC – que o anterior Governo defendia e este parece que já não, e ainda bem – porque isso iria poupar sobretudo os bancos, a Portugal Telecom, a EDP, que podem pagar muito mais impostos do que pagam.

P. – São empresas que, à excepção dos bancos, não estão sujeitas a verdadeira concorrência.
R. – Claro, e o problema é que os governos têm protegido isso. Porque é que não se liberalizou o mercado do gás e vendemos gás 50 por cento mais caro do que Espanha? Para além de que em sectores formalmente liberalizados, como as telecomunicações, não há verdadeira concorrência. Os reguladores parecem estar mais interessados na saúde das empresas do que nos interesses dos consumidores. É por isso que costumo dizer que o poder económico domina o poder político.

P. – Há ainda a autoridade da concorrência…
R. – Mais uma vez estou pessimista. Ela até pode tentar fazer o melhor serviço, mas a verdade é que não tem poder político – e isso não tem nada ver com as pessoas que lá estão, que podem ser as melhores.

P. – E isso é porque os “lobbies” estão dentro do Estado, como já tem dito, mas porque o poder político quer estar bem com os grupos económicos?
R. – O que verifico é que governos, sejam do PS ou do PSD, tem querido estar bem com os grupos económicos.

P. РQue vantagem ̩ que isso lhes traz?
R. – Pergunte-lhes a eles. Mas sendo assim não há concorrência a sério. Veja, por exemplo, o que se passa com a Associação Nacional de Farmácias. Alguém compreende que alguns medicamentos de venda livre não possam ser vendidos fora das farmácias? Isto é um problema de poder e o mesmo sucede noutros países.

P. – Já disse que os grupos económicos têm hoje mais poder do que no tempo do anterior regime, mas também tem dito que os sindicatos da administração pública são um “lobby” muito poderoso…
R. – Os sindicatos da administração pública, das empresas públicas e das monopolísticas são os mais perigosos. Veja o caso dos médicos: podem andar a fazer greves sempre porque não perdem o emprego. Já na indústria têxtil, onde a seguir ao 25 de Abril havia sindicatos muito poderosos, hoje ninguém os ouve, porque aí perceberam que para manter os empregos dos seus associados tinham de baixar as suas reivindicações. É isso que sucede nas empresas sujeitas à concorrência, onde não tenho nada contra os sindicatos, que se têm portado muito bem. Os da função pública, que têm as costas quentes, podem fazer o que muito bem entenderem.

P. – Isso não é transformar a função pública no bode expiatório de todos os males?
R. – Fui funcionário público grande parte da vida, conheci muito boa gente, mas há algo que não podemos escamotear: nós gastamos 15 por cento da riqueza nacional para pagar os salários da administração pública quando a média europeia é 10,4 por cento. É cinquenta por cento mais e temos dos piores serviços públicos. Por outro lado, para qualificações iguais os funcionários públicos ganham bastante mais do que os do sector privado. Aí uns 20 por cento a mais e ainda beneficiam de duas coisas muito importantes: um sistema de pensões muito mais favorável e que, no meu entender, tem de ser revisto, e segurança no emprego. São privilégios que, do ponto de vista da justiça social, são inaceitáveis. Esta situação não se pode manter, o país não pode suportar gastar 15 por cento da sua riqueza para ter maus serviços e suportar privilégios relativos quando não tem os serviços correspondentes. Isto não tem nada contra nenhum funcionário público, que os há muito bons.

Em Portugal Temos 30 por Cento de Professores a Mais
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004

P. РTem dito que o estado do ensino ̩ uma das suas preocupa̵̤es fundamentais. Porqu̻?

R. – Primeiro, porque é um factor importante para o crescimento económico, apesar de não ser, nem de perto nem de longe, o único. Mas hoje considera-se internacionalmente que uma pessoa que não tem o 12º ano não serve muito para a vida activa. Ainda recentemente um empresário da construção civil me dizia que os seus empregados de Leste eram melhores do que os portugueses porque um indivíduo com o 12º ano arruma melhor os tijolos, organiza melhor o trabalho, do que alguém sem estudos. Nunca tinha pensado nisto…

P. – É porque têm mais ginástica de pensar…
R. – Exactamente. Ora, em Portugal, entre os 24 e os 65 anos, só 20 por cento dos portugueses têm o 12º ano – na Europa a média é 67 por cento. Até a Turquia está à nossa frente. E já não é só herança do passado: hoje mais de metade dos alunos não acabam o 12º ano e muitos nem sequer o básico. Assim nunca recuperaremos a “herança do passado” e nos aproximaremos da média europeia. Ora o que é que vai ser o país no futuro com uma população desta? Mais: se olharmos para a qualidade, os exames comparativos, os PISA, mostram que atrás de nós, nos países estudados, só ficam o México e o Luxemburgo, e este por causa da percentagem de imigrantes, muitos deles portugueses.

P. – É por investir pouco?
R. – Não. Nós já gastamos com a educação mais do que a média da OCDE. Temos 30 por cento de professores a mais em relação à média e as turmas mais pequenas dos 27 países comparados. Temos o menor número de aulas para os alunos e as menores cargas horárias para os professores. Por fim, sobretudo no fim da carreira, temos alguns dos professores primários mais bem pagos da Europa. Mais: nunca ninguém me explicou porque é que não há concursos verdadeiros para professores, porque é que se utilizam as notas das universidades venham, eles de uma escola boa e exigente ou de uma universidade manhosa e perdulária nas notas. Isto resolvia-se bem com um teste: porque é que não se resolve? E o que é que anda um aluno a fazer matemática no 10º ano se não teve aproveitamento no 8º e no 9º? Anda a fazer com que os seus colegas não aprendam como podiam aprender, porque o professor tem de se ocupar dele em vez de puxar pelos outros. Por fim, ainda se andam a formar mais professores quando não há lugar para eles, gasta-se o dinheiro todo com salários e não se compram computadores. É um desastre completo. Nem daqui a 30 ou 40 anos nos livramos dos erros que andamos a fazer hoje.

Os Benefícios Fiscais dos PPR Só Servem para Desviar as Poupanças de Umas Aplicações para Outras
Segunda-feira, 20 de Setembro de 2004

P. – É a favor de não se cumprir o défice, como parece que vai acontecer este ano?

R. – A realidade é que o défice tem de ser superior, e se não for é através de receitas extraordinárias. Estas têm uma vantagem: a União Europeia aceita essa batota, porque outros também a fazem, mas é uma ficção. Essas custam-nos dinheiro, são uma má solução, pelo que apoio integralmente o discurso do ministro. Se tivermos de apresentar um défice de cinco por cento que passe em Bruxelas, prefiro isso a um défice disfarçado com receitas extraordinárias.

P. РO que pensa enṭo de Manuela Ferreira Leite?
R. – Que fez coisas muito positivas, pois conseguiu conter o crescimento da despesa pública, mas fê-lo numa base conjuntural, não estrutural. Congelou salários, mas não chegou a concretizar uma reestruturação da administração pública que evite a subida constante das despesas.

P. РE de Bag̣o F̩lix?
R. – Até agora, pelas intervenções da última semana, o que anunciou é muito positivo. Não sei se consegue levar por diante tudo, por causa do ciclo eleitoral, mas se conseguir será muito bom. De resto, a única coisa com que não concordo é com as taxas moderadoras, pois concordo com a redução dos benefícios fiscais.

P. – Mesmo com a retirada à classe média dos benefícios associados aos PPR, PPA, etc?
R. – Sim, se possível combinado, como ele disse, com algum ajustamento nos escalões do IRS. É também bom que o Governo tenha abandonado a ideia do choque fiscal e esteja a colocar a ênfase no IRS. Eu presido a uma instituição que faz PPR e se calhar não devia estar a dizer isto, mas os PPR não contribuem nada para a poupança nacional. Só servem para desviar as poupanças de umas aplicações para outras, para as que dão benefícios fiscais.

P. – E porque está contra as taxas moderadoras?
R. – Primeiro por questões ideológicas. Se bem que quando falo de salários possa parecer à direita, quando falo de modelo social europeu, não sou liberal. Mas também por razões práticas, nomeadamente por implicar recorrer às declarações de rendimento que, muitas vezes, são completamente falsas, o que agravaria mais a injustiça fiscal. Finalmente, porque os ricos vão pouco ao sistema nacional de saúde e esta medida acabaria por cair sobre a classe média, que já é a que paga mais impostos e agora também pagaria mais pela saúde. Isto para mim não é aceitável.

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