Aldraba de um palácio em Cáceres - Agosto de 2004Eis um contributo sobre as aldrabas que nos chegou à caixa de comentários

“Da invisibilidade dos objectos quotidianos à quotidiana ausência da sua utilização

Há objectos quase invisíveis, que acompanharam gerações no seu quotidiano, como as árvores do quintal ou os animais domésticos; todavia, ao invés daqueles, não produzem frutos ou sombras, ovos, carne ou companhia.
Atravessaram séculos, nas portas, inseridos num sistema de comunicação ancestral que simbolicamente contribuía para proteger a casa de intrusões.
Os seus criadores desapareceram da paisagem: mágicos fazedores de tesouros, extinguiram-se com o galope de uma evolução que varreu sinais antigos de uma vivência sábia.
Aldrabas, batentes, espelhos de fechadura, pica portas são os seus nomes e rareiam em Miranda do Douro, sede de um concelho onde me afiançam existir ainda – nas aldeias – destes utensílios.
Em Miranda, no centro histórico, encontramos ( em número escasso) uma mão cheia de trinchetas, outra de batentes (sobretudo em edificios religiosos) martelos de porta e uma presença residual de aldrabas.
Na fechadura de uma companhia de seguros, mantém-se um belíssimo exemplar de um pica porta em forma de enguia.
Mas o deslumbramento que outrora estes materiais devem ter causado no visitante já não é possivel: os habitantes (com o alheamento da autarquia) resolveram modernizar as entradas das residências substituíndo a madeira por alumínio proliferando agora maçanetas douradas e puxadores sem beleza nem criatividade.
A ideia de conotar as portas antigas com um passado mais dificil produziu o abandono colectivo daqueles utensílios, celebrando-se o melhor nível de vida e o consequente aumento de bem-estar forrando as portas da cidade com alumínios brancos,e maçanetas douradas, em vez da madeira e do ferro toscos.
Por onde andarão os velhos objectos?
Nos antiquários? Em Espanha?
Nas casas de campo das élites citadinas?
Os responsáveis autárquicos deveriam reflectir acerca desta questão. E promover a reutilização dos objectos retirados, que ainda estajam na posse dos proprietários das casas. A não ser que já seja demasiado tarde e só possamos agora falar de ausência e saudade.
Sintoma de riqueza recente, esta avalanche renovadora ignora que a aldraba e o batente, pela elegância, beleza e história simbólica e até por causa da extinção dos ferreiros, são preciosas raridades confundidas com velharia inútil.
À patrimonialização da gastronomia e da arquitectura sólida, de granito, corresponderia a porta de pinho robusta com o sonoro utensílio, substituídos pelo facilitismo E pela ilegalidade de entradas feias e descontextualizadas.

O estigma da interioridade e a consequente marginalização desta região do desenvolvimento pode ser uma explicação para a invasão de puxadores, maçanetas e alumínios.

O uso de expressões como aquela que foi utilizada em mirandês pelo vice-presidente do Município na abertura do Congresso “Leituras antropológicas de Trás – os – Montesâ€? recebendo os congressistas, ainda que pretendesse sublinhar o espírito hospitaleiro das gentes destas terras de Miranda, remeteu-nos para um tempo em que anunciar uma visita se fazia manipulando o objecto.

Miranda do Douro, Novembro de 2003″

Luís Filipe Maçarico

Para mais informação do mesmo autor sobre este assunto:

«Sem pretensão e portanto mais como um contributo para o conhecimento destes utensílios chamo a atenção para o nº 8 da revista “Arqueologia Medieval”, ed. Afrontamento, onde tive o privilégio de publicar o artigo “A Função Antropológica da Aldraba”, cuja leitura, obviamente recomendo.»

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