Sampaio:
Sim, a decisão foi política mas se bem entendo o presidente que temos não foi exclusivamente conjuntural. Não foram as pessoas, os líderes em questão que a determinaram. A palavra de honra, o compromisso, a responsabilização do sistema de democracia representativa e das consequentes legislaturas deverão ter sido os valores finais em que Sampaio apostou. Apostou. O futuro nos dirá se os tomadores desse legado são merecedores de tal aposta. Modestamente, já aqui deixei perceber que poucos políticos me mereceriam menos esse benefício da dúvida que Pedro Santana Lopes e Paulo Portas, mas não sou Presidente de República nenhuma.

Sampaio discursou para os manuais de ciência política, ou, mais comedidamente, para a jurisprudência do histórico da democracia portuguesa.

Sampaio não traiu ninguém. Não fez nenhum ataque pessoal a ninguém.
Nesta história entre traidores e traídos restam-nos José Manuel Durão Barroso na qualidade dos primeiros e o eleitorado português do PSD na qualidade dos segundos.
Sampaio julga-se perante a sua consciência como o presidente de todos os portugueses, interpretando esse compromisso de uma forma bastante mais literal que Mário Soares, por exemplo.
Querem-se líderes capazes do magistério quando as funções o exigem e outros capazes de acatar respeitosamente as decisões legítimas de órgãos de soberania.

Não estou arrependido de ter apoiado Jorge Sampaio. No limite imagino-me a tomar tal posição caso o Presidente violasse a Constituição e colocasse em causa o Estado de Direito.
Quando nele votei sabia que uma situação hipotética como esta não tinha uma solução automática. Nada disso foi posto em causa. Nada disso estava em causa como disse o PS, PSD e o CDS.

Em caso de dúvida num fora-de-jogo beneficia-se o “meu partidoâ€? acreditavam os líderes socialistas. Daqui os maus fígados, as promessas de ódio eterno, a quebra de amizades de décadas, as piadolas de Ana Gomes chamando-lhe um presidente de direita. É muito triste ver esta injustiça ser verbalizada – ainda que a quente – por membros do secretariado do PS, secretário-geral incluído.

Um dos aspectos que sempre me atraiu enquanto simpatizante do PS é a capacidade de encontrar por lá gente que em momentos decisivos colocou a avaliação do interesse nacional acima dos interesses partidários. Mário Soares fê-lo em momentos decisivos, enquanto primeiro-ministro, por exemplo.
Felizmente, até hoje, tenho sentido satisfação e orgulho nas decisões tomadas. Hoje não estou satisfeito, mas nem por isso me sinto humilhado.

Dito isto, consigo achar que Jorge Sampaio errou na apreciação que fez do interesse nacional. E errou na apreciação das suas capacidades reais de fiscalização do exercício da actividade governativa.

O novo governo apresentará na assembleia um novo programa. Não será Sampaio a escrevê-lo. Imagine-se que é aprovado e que é substancialmente diferente do anterior. Será esse o único momento razoável para o presidente agir à luz dos valores que privilegiou na decisão que tomou.
Legitimando a Assembleia da República como o fez, estando esse programa sufragado, o Presidente, para se manter coerente, não deverá voltar a pronunciar-se de outra forma que não as utilizadas até aqui: com discursos, com recomendações, com murros na mesa, com um veto mais ou menos esporádico, ponto final. Por isso temo o pior. Ninguém saberá para quem e em nome de quem governará este novo governo e se executará o novo programa. Por isso preferia a responsabilização do eleitorado, preferia que se vincasse a relevância do cumprimento do mandato executivo e a sua supremacia sobre qualquer outro cargo internacional.
Mas também aqui é preciso não perder a perspectiva: o PSD e o CDS/PP, os seus dirigentes, são e serão os principais responsáveis pela governação que vierem a fazer do país ao longo de toda a legislatura. Foram eles que se coligaram, foram eles não defenderam eleições e é também sobre as suas decisões que o eleitorado (particularmente os que os sufragaram favoravelmente em 2001) o deverá julgar. Em última instância resultará da vantagem ou desvantagem percebida para o país que se julgará a bondada da decisão de Jorge Sampaio. Uma má experiência poderá levar-nos a uma nova interpretação do semi-presidencialismo e a uma maior partidarização do exercício do seu poder.

Ferro Rodrigues: por tudo o que passou e se fez passar surgiu por vezes com uma aura de inimputabilidade temporária com a qual íamos convivendo perante a sua forma emotiva de viver a política.
Aos inimputáveis como sabemos não convém que se mantenham em cargos de responsabilidade. A saída neste momento, e desta forma, assumindo uma afronta pessoal feita pelo seu amigo e camarada Jorge Sampaio, lida assim, não enobrece o Partido e terá que ser adicionada a outras atitudes a quente de Ferro Rodrigues no tal estado de “inimputabilidade temporária”.
Pelo que já aqui disse e apesar deste tortuoso caminho, aguardo agora com esperança que o partido finalmente encare o seu passado recente e se renove, evoluindo com a sua experiência e afastando, de uma vez, o falso receio da descaracterização ideológica para a qual caminhou de forma veloz quando mais a temeu.

Ao leitor:
Durante o discurso tentei imaginar Pedro Santana Lopes obrigado a pronunciar-se perante matéria idêntica no eventual exercício do cargo de Presidente da República. Lembram-se como era provável este cenário há coisa de um dois meses? Uma Primeiro-Ministro Socialista demitia-se a meio da sua primeira legislatura para assumir funções de Secretária Geral das Nações Unidas. Havia uma maioria parlamentar PS/PL (Partido Liberal entretanto nascido da blogoesfera) que, contudo, perdera de forma significativa umas eleições Europeias… Gostava que o leitor fizesse esse mesmo exercício de substituir os personagens e que o eleitor tomasse o exemplo de Sampaio como referência num dia futuro que se proponha a votos perante um Pedro Santana Lopes look-alike.

Não por concordar com a sua decisão mas pela lição dos compromissos que não se podem invocar no supremo interesse da nação aprecio a externalidade positiva deste exemplo de Sampaio.

Uma última nota:

Com este precedente, com a atitude de Durão Barroso e de Sampaio, e apesar do crescente culto da personalidade do líder durante as campanhas eleitorais, a ignorância que temos em relação a tantos deputados e ao seu trabalho e a absoluta nulidade política que tantos outros “demonstramâ€? no parlamento e no interior dos seus próprios partidos, valoriza-se como problema. Ao cuidado de um partido que se digne.

P.S.: Desde já me ofereço para que a malta de esquerda possa fazer a catarse um pouco às minhas custas, apesar da profunda desilusão que me acompanhou desde que ouvi hoje Jorge Sampaio. Quanto mais depressa passar o estado depressivo melhor. Há muito trabalho pela frente minha gente!

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