O prometido é devido.

Meu caro Timshel,
A propósito do problema puramente intelectual que me colocas-te a propósito deste texto tenho apenas de reforçar aquilo que o Lutz em muito boa hora escreveu e acrescentar no final um detalhe.

É para mim difícil aceitar a premissa do absolutismo conferido por um direito de origem divina versus relativismo de um direito de origem secular, se quisermos chamar-lhe assim. Esta estranheza acontece muito provavelmente porque, como escreve o Lutz, esteja sistematicamente a ser convidado a olhar comparativamente os códigos de várias sociedades, colocando-me ora pairando sobre o mundo ora sentindo-o na casa do vizinho e na minha própria casa. Observando ainda que pouco mais do que superficialmente diversas religiões e os seus percursos históricos, o próprio carácter absoluto, dogmático, de certos princípios surge (para não dizer mais), camuflado de tal forma que na prática foi bem diferente (relativo) em distintas épocas.

O que é o mal ou o bem nunca foi suficientemente perene em muitas religiões para que possas considerar inatacável essa característica de fundamentação absoluta a uma moral que atribuis a um direito de origem divina. Será o destino das religiões nunca encontrarem testemunhas que as mereçam e deixarem-se sempre ser manipuladas pela “consciência moral colectivaâ€? de que falas? Da mistura, da correlação de poderes de que o peão da religião não está isolado resumes o problema da fundamentação divina versus profana a um único dilema. Isto porque o divino se traduz no religioso, o teórico na prática.
Mais perguntas: o teu actual momento da história é mais válido que o dos cristão que durante a 2ª Guerra Mundial se colaram ao nazismo para usares o exemplo que referes? Uma religião é outra coisa que os seus religiosos/crentes?
Enfim, repito questões mais ou menos clássicas que ajudam a recusar um raciocínio meramente lógico, ou teológico numa espécie de sentido estrito.

Podemos discutir que falo de interpretações, que as palavras nunca mudaram, que teoricamente… Mas julgo que é fraca essa defesa quando o que pões em causa na moral do leigo descrente é precisamente o impedimento de qualquer julgamento de validade sobre uma qualquer obrigação moral. Não há matérias estanques, e seguramente os axiomas religiosos com o devido tempo têm demonstrado um evidente grau de permeabilidade. Vamos destruindo para (re)construir sempre.

Bom, mas com isto tudo acabo por fugir a outra questão. Onde vou eu, leigo sem fé, encontrar a minha âncora, o meu referencial? Como o Lutz muito bem enuncia, não nego estarmos perante um paradoxo pessoal: “Posso observar a moral como variável e um produto da sociedade, mas não me é possível viver segundo uma moral relativa.â€? Em suma diz: eu preciso de um axioma! Mas acrescenta: “Só que a assunção do axioma não elimina a minha observação anterior: a da sua arbitrariedade.â€?

O Lutz remata que a moral pessoal funda-se nas consequências retiradas dessa observação que o levam à tolerância, ou melhor, continua, à permanente desconstrução dos edifícios que tende a ir erigindo em torno de um axioma sempre demasiado limitativo.
Com a apresentação deste processo de construção de uma moral e com a formalização parcial da mesma que os regimes democráticos permitem através do Estado de Direito, encontramos uma hipótese de satisfação básica das nossas necessidades de entendimento, uma alternativa à indispensabilidade de uma religião que, contudo, não nega ou recusa. Temos um modelo tolerante para usar, julgo que não abusivamente, o termo do Lutz.

Uma nota final. O conceito de tolerância… Vejo-o ser usado demasiadas vezes com uma conotação passiva, quase paternalista. Há os tolerantes e os intolerantes? Parece-me demasiado redutor eleger esta dicotomia como preponderante. Redutor mas tanto mais aceitável quanto mais estes forem tempos de fundamentalismo. Infelizmente, por isso desconfio que tenhamos de andar a marcar passo num outro projecto mais ambicioso de entendimento.
Conformando-me com o conceito de tolerância, prefiro sem dúvida o esclarecimento final do Lutz que o apresenta como um processo. O axioma corre o risco de só o ser enquanto processo de pesquisa e prova de uma curiosidade militante que nada rejeita para se ir reconstruindo. Desse “axiomaâ€? e deste relativismo faço a minha “profissão de féâ€? e a minha roupa moral e respectiva fundamentação.

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