(I/III)
(II/III)

III/III
Há quinze dias chega-me a casa uma católica praticante com uma outra frase que me levou a esta que acabei de citar. [Mas se não acreditas em Deus como podes viver?] “Sabes que hoje o padre disse que devíamos admirar os que não crêem?â€?
“Disse que há entre eles quem respeite o próximo, quem pratique o bem, quem sirva de exemplo sem qualquer esperança de recompensa, sem qualquer perspectiva mística, sem ver um além.â€?
Quis o padre com isto embaraçar o rebanho, espicaça-lo à superação de acordo com a respectiva cartilha… A perspectiva de me identificar minimamente com aquele que o padre apontou na rua dos paradigmas teve a sua piada.
Bem haja a este padre! Que se faça esta luz – eis uma expressão com muita carga religiosa – entre todos os que crêem quando virem ali ao lado o quase ofensivo indivíduo que sem orgulho e sem temor diz que não acredita em maiúsculas.

Texto completo:

I/III
Não tenho clube religioso. Tenho educação cristã sim senhor, tenho curiosidade pela religiosidade dos outros e num sentido muito amplo que podemos dar à palavra até me podem atribuir religiosidade. Também não sou militante contra quem tem fé. A única militância que pratico é a do meu direito a viver em paz com os outros, pensando e “acreditado” no que bem entendo em termos de religiosidade. Já muito antes de Saramago – desculpa lá pá – tinha encontrado algum conforto e pacificação no entendimento da fé dos outros: “se tu acreditas, Ele existe”, só e apenas assim e isso basta-me, tal como bastaria se ninguém acreditasse.
Com este princípio nunca tive chatices, nunca senti que alguém ficasse ofendido e nunca ninguém me aborreceu…ou quase nunca. Também nunca me demiti de fazer respeitar o direito dos outros, o mesmo que pedia para mim. À parte umas bem intencionadas e inócuas tentativas de conversão posso dizer que nasci em tempos agradáveis para ser não crente.
Mas…
O mas vem da corporação, da instituição em mancha de óleo, do aguçar dos discursos, dos grupos de pressão, dos fundamentalismos, dos que não consideram meu direito arrogar-me a pensar cá para comigo que Deus não existe e levar a minha vida assim pensando e agindo de acordo. Estar só, não crente, é quase como ser mulato no meio de brancos muito brancos e de pretos muito pretos.
Prezo muito alguns dos mandamentos que julgo quase universais, ecuménicos, e com isso vou construindo a minhas pontes com quem quiser ajudar. Mas, como disse, tenho tido sorte com os tempos e com o local onde vivo. Há por este planeta quem abomine mais o que simplesmente não crê do que o “infielâ€?. O primeiro é-lhe demasiado incompreensível, demasiado estranho. Gregos e Troianos facilmente se juntam para espezinhar o que se quer afastar da sua contenda.

II/III
Uma noite, à porta de uma discoteca, dois árabes muito muçulmanos (do Barahein), empunhando as respectivas Coca-Colas, discutiam afavelmente as diferenças dos respectivos mundos com um punhado de estrangeiros de diversas nacionalidades, portadores de cerveja, nos quais me incluía. Um estranho e feliz grupo que a globalização quis juntar em Espanha sob o patrocínio de uma multinacional americana.
A dado momento comentavam-se os regimes políticos. Os árabes defenderam as vantagens da monarquia ao que foram secundados pelos britânicos e espanhóis de serviço e contraditados pelo portuga e pelos italianos. Os monárquicos alegraram-se quando revelaram a transversalidade da importância histórica da monarquia.
Passou-se então para a religião e no pequeno punhado de gente à conversa havia quase de tudo. Faltavam um judeu e um budista para termos um digno lote de embaixadores. Mas havia, muçulmanos (sinceramente não sei de que orientação, é ir ver à enciclopédia na entrada Baharein), havia hindus, havia cristãos para todos os gostos e havia eu.
Naquele momento em que revelei que não acreditava em Deus recaíram sobre mim pelo menos dois tipos de veredictos. Por um lado o de alguns ocidentais de pouca fé que condescendiam na minha opção (talvez por se sentirem perto dela). Por outro lado, a dos crentes fervorosos: um protestante (já não me recordo de que país nem de que igreja) e os muçulmanos. Foi contudo a frase de um dos amigos do Barahein que melhor sintetizou os olhares que me lançava este último grupo.
Mas se não acreditas em Deus como podes viver?
O peso do céu estrelado e do quarto crescente aumentou subitamente e a conversa terminou por ali assim como as bebidas.

III/III
Há quinze dias chega-me a casa uma católica praticante com uma outra frase que me levou a esta que acabei de citar. [Mas se não acreditas em Deus como podes viver?] “Sabes que hoje o padre disse que devíamos admirar os que não crêem?â€?
“Disse que há entre eles quem respeite o próximo, quem pratique o bem, quem sirva de exemplo sem qualquer esperança de recompensa, sem qualquer perspectiva mística, sem ver um além.â€?
Quis o padre com isto embaraçar o rebanho, espicaça-lo à superação de acordo com a respectiva cartilha… A perspectiva de me identificar minimamente com aquele que o padre apontou na rua dos paradigmas teve a sua piada.
Bem haja a este padre! Que se faça esta luz – eis uma expressão com muita carga religiosa – entre todos os que crêem quando virem ali ao lado o quase ofensivo indivíduo que sem orgulho e sem temor diz que não acredita em maiúsculas.

Discover more from Adufe.net

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading