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As armas do meu Adufe,
não têm signo nem fronteira.

Bem-vindo ao Adufe 5.0


Perdemos geral! – Rocinha, Rio de Janeiro

20.04.2004 por Rui Cerdeira Branco Categoria Brasil

O Ruy Zananiri continua mandando os seus despachos do Brasil sobre a situação no Rio de Janeiro. Hoje selecciono uma crónica de Joaquim Ferreira dos Santos editado no Globo – a Globo que me perdoe mas reproduzo em anexo mitigando a infracção com o convite a outras crónicas que por lá se podem ler. Mais daqui a pouco passará pelo Adufe um depoimento nascido da mesma emoção, desta vez enviado por uma amiga do Ruy que ele (com o seu acordo) sugere que chegue aqui a esta outro canto da portugalidade.

Pelo que leio O Globo vem fazendo um excelente trabalho escrito – bem menos sensacionalista do que o que por vezes perpassa na TV (e na própria Globo também). A crónica “Esculacho” de Joaquim Ferreira Santos é um exemplo excelente da complementariadade à notícia. O melhor tempero para nos apurar os sentidos sobre o que é a refrega. Estamos longe, felizmente, do conflito armado concreto que existe no Rio de Janeiro, mas parte da inquietação que transparece da crónica de Joaquim Ferreira dos Santos é-me demasiado familiar no meu quotidiano. O “chico espertismo”, a perda de referências quanto ao papel da autoridade (exercício e percepção), o desenrascanço, o alheamento fatalista. Talvez seja só a luz que me ilude a semelhança ou talvez não.

Esculacho

Aconteceu embaixo da minha varanda e, mesmo com o desfrute da cena a partir de uma trincheira tão confortável, permitam mesmo assim que eu me conceda o título de correspondente de guerra — pois é uma pequena história da guerra carioca que eu vou contar.

Embaixo da minha varanda, no outrora pacato distrito das �guas Férreas, o barulhento bairro do Cosme Velho de hoje, 20 policiais preparavam-se para subir a ladeira atrás de assaltantes. Normal. Uma daquelas cenas que todo carioca já deve ter visto embaixo de sua varanda. A novidade é que desta vez, nove horas da noite, aproximou-se do grupo de policiais uma senhora de seus 60 anos, chegando visivelmente cansada das agruras de um dia pesado. Perguntou aos homens da lei se podia subir a ladeira, uma das entradas para o Morro do Cerro Corá. Um policial, risinho abafado, disse que sim, desde que ela não tivesse medo de tiro.

Meio que ofendida pelo gracejo fora de hora, meio que irritada de participar de uma fotografia que ela vê diariamente nos jornais, a mulher subiu na frente dos policiais. Conseguiu calma, ou raiva, suficiente, para responder ao PM que tinha mais medo deles do que das balas dos bandidos. Disse aquilo como se fosse um desabafo natural, previsto em lei e nada ofensivo às regras do jogo urbano. Também normal. Em seguida, marchou para casa.

Os policiais deram a impressão de que o depoimento da senhora procedia. Ficaram mudos. Pareciam já ter ouvido algo semelhante antes. Não puxaram das algemas para estancar o evidente crime de desacato à autoridade. Nenhum deles gritou “teje presaâ€?. A senhora, por sua vez, parecia saber — afinal, havia um sujeito de bermudas civis e fuzil entre os PMs — que esse negócio de autoridade definitivamente perdera muito da liturgia do cargo. E a noite acabou assim. Normal. O normal carioca, embora desta vez sem mortos ou feridos de qualquer dos lados. Apenas uma adrenalina de leve para não incomodar o sono.

Machado de Assis morou logo ali, onde hoje tem uma loja de café. A casa da Cecília Meireles ainda fica do outro lado da rua. Eram cronistas melhores, sem dúvida. Tinham estilo e refinamento superiores aos dos colegas-vizinhos do século XXI. Sem querer inventar desculpa, sem tirar o corpo fora, é preciso dizer que, convenhamos, eles também viam cenas bem mais inspiradoras das suas varandas.

Ninguém é obrigado a acreditar naquela história de que a borboleta batendo as asas na Indonésia mexe com as folhas das amendoeiras da Glória. Poesia. Lao Tse total. O que se mexe a quilômetros com cada tiroteio no Rio, no entanto, é diferente. Mesmo não atingidos diretamente, etéreos que são, os bons princípios, os códigos de civilidade, o respeito às normas, os manuais de educação foram todos desafinados pelo ricochete das balas. Por ondas, como se asas malignas de borboleta fossem, elas passaram a dar o tom de faroeste das relações vigentes.

(Vocês estão ouvindo ou a gritaria no restaurante, o latido do pitbull no corredor, o Geninho mandando seus zagueiros quebrarem o Felipe e o aleluia da igreja ao lado não deixam?)

A velhinha debocha da polícia do Garotinho, o Garotinho debocha do ministro da Justiça e a cantora Adriana Calcanhotto, no último elogio que ouvimos, debocha de todos dizendo que cariocas são bacanas, eles não gostam de sinal fechado.

Pode parecer desvario, coisa de quem mora léguas distante do bangue-bangue na Rocinha. Mas será que eu me faria entender se dissesse que temo tanto o fogo cruzado quanto a bicicleta dos entregadores de farmácia nas calçadas? As balas dos traficantes no Vidigal matam e o técnico Abel, o suposto chefe de disciplina rubro-negra, esbravejando palavrões, invadindo o campo para pegar o juiz, não — mas eu me faço entender se digo serem todos farinha do mesmo saco?

A sobrevivência física ficou uma necessidade tão prioritária, que nem atentamos mais para a lei das selvas em que ela jogou todo o resto. Estamos vivos, e é bom repetir porque não é façanha pouca diante do que se lê nos jornais, estamos vivos e isso às vezes dá até um certo constrangimento, pode parecer crônica leve de segunda-feira, de ficar reclamando das coisas que não dizem respeito ao ato do coração continuar batendo. Estamos vivos, sem dúvida, mas eu acabei de ver o guarda da esquina fumando um cigarrinho-amigo, levando um papo maneiro com aquele flanelinha que cobra R$ 10 para estacionar carro de turista aos pés do Corcovado — e isso evidentemente não pode acabar bem.

São ricochetes de uma guerra que está matando concretamente muitos e deixando todos feridos com seus estilhaços boçais seja na fúria dos pitboys, no trânsito enlouquecido, no futebol do carrinho por trás, na paquera cafajeste que puxa o cabelo das moças e — minha figura preferida na perda de referências do que é certo ou errado — no guarda que apita, furioso, decibéis criminosos embaixo do sinal luminoso que está ali fazendo a mesmíssima coisa que ele, mas na santa paz. Somos todos vítimas e cúmplices dessa estupidez provocada pelas balas que explodem não necessariamente na nossa rua, mas reverberam na grosseria geral e dão o tom chinfrim da coisa. Como dizem os bandidos na hora do esculacho, “perdeu, perdeuâ€?.

A velhinha sabia que não tem jeito. Na ladeira carioca você acaba encontrando uma bala ou outra, e a nossa heroína foi em frente, deixando o destino decidir a parada, que ela tinha mais o que fazer. Diariamente estou num táxi em que, para cortar caminho, o motorista cruza à esquerda sobre uma faixa dupla, na frente de uma cabine da PM. Eu me finjo de morto, o motorista, de esperto e o PM, escondido na cabine, finge também ter coisa mais importante a resolver. Normalíssimo, todos na sua, cantando baixinho o “entrega na mão de Deus e vaiâ€?. Há crimes monstruosos no quarteirão adiante e o espanto diante dos delitos sem vítimas fatais vai se anestesiando. Perdemos geral.

Tempos atrás, diante de um problema sem solução, só restou ao poeta tocar um tango argentino. Pelo que vejo da varanda, a esperança agora é que uma borboleta cheia de poesia bata as asas na Indonésia e mude a direção das balas para longe de nossas cabeças.

João Ferreira dos Santos

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