Talvez venha a discorrer mais em prosa do que em estílo 10 mandamentos como fiz até aqui mas por hoje vou arriscar dar troco a algumas críticas/sugestões concretas que li sobre o assunto, na blogoesfera, nos últimos dias.

Vou pegar no texto do Nuno P de sexta-feira e critica-lo detalhadamente porque julgo que é excelente para poder expôr quão distante estamos de um entendimento e necessitados de conversa, mesmo entre pessoas que dedicam algum tempo da sua vida a pensar nestes assuntos.
Agradeço desde já a informação que a Isabel Goulão me enviou por e-mail: “Memorando da Mesa-Redonda “Dia Sem Carros nas Cidades – Balanço e Perpesctivas” disponível nas páginas da ACA-M e cuja leitura recomendo.

Vamos ao texto do Nuno P.
Resumindo para melhor percebermos as diferenças:

O Nuno acha que deve haver lugares de estacionamento para todos os que trabalhem em Lisboa e que desejem trazer carro devendo estes ser taxados à entrada da cidade num sistema de portagens, à semelhança do que é feito numa minúscula parcela da cidade de Londres (controlo através de vídeo vigilância se não me engano).

O Nuno acha que a EMEL tem falhas de funcionamento ao nível do relacionamento com o automobilista – questões técnicas com a bilhética e respectivo pagamento – e acha a EMEL prepotente por este motivo mas também porque o sistema de parquímetros exige que os trabalhadores automobilizados tenham de renovar a tarifa de duas em duas horas o que leva ao incumprimento ou, subentendo, a graves prejuízos para a produtividade das empresas.

Por outro lado, o Nuno desvaloriza a utilidade dos transportes públicos sublinhando as suas insuficiências e exemplificando com a sua incapacidade em resolver os problemas de trânsito em cidades onde supostamente são muito mais eficazes e completos do que cá. O Nuno dá o exemplo de Paris, um exemplo que desconheço.

Por fim, a solução do Nuno é a de sobrecarregar o preço dos combustíveis por forma a fazer regredir o uso do automóvel à situação de bem de luxo só ao alcance dos mais ricos e justifica esta concessão com um “estamos perante um problema de quase impossível resolução com consciência social…â€?

Era dificil (mas não impossível) que me oferecessem um texto com que estivesse em maior desacordo.

Qual é o problema que queremos combater? O que é que está errado?
Prioritizando os problemas elejo como o mais importante um problema de saúde pública.

A cada ano que passa são mais e mais os dias em que os níveis de poluição atmosférica causadores de graves danos para a saúde humana no interior das cidade aumentam. Falo por exemplo, das elevadas concentrações de ozono que costumam ocorrer em dias úteis, quentes e solarengos como consequência da interacção entre os gases libertados pela combustão dos derivados de petróleo e o bombardeamento solar (outros saberão explicar melhor o fenómeno). O que é certo é que os carrinhos, em larga medida os carrinhos particulares, são responsáveis indirectos (ou deverei dizer directos?) por mais formas de morte, doença e invalidez do que as provocadas pelos acidentes de viação. Apenas são mais invisíveis, menos espectaculares e mediáticas, mais difíceis de relacionar directamente com a sua principal causa. Elas existem e progridem.

Tendo dito isto julgo que é mais fácil perceber o que acho da desgraça de não haver lugares de estacionamento para todos os que querem trazer o carro para a porta do local de trabalho… O problema reside na emissão de gases poluentes num ponto específico do globo onde eles se tornam particularmente letais: o interior das cidades.
A solução passa por encontrar formas de reduzir essas emissões e, no momento actual, atendendo à urgência do problema, a solução terá sempre de passar pela redução do tráfego no interior da cidade e na sua substituição por formas que pelo menos sejam menos poluentes nesse mesmo ponto específico do globo. Trata-se de um objectivo até muito pouco ambicioso numa perspectiva mais global se lerem bem o que escrevi.

Apesar de estarmos a milhas de distância quanto à identificação do problema admitamos que o objectivo era comum.

O Nuno sugere portagens em vez de parquímetros…
Também aqui não posso concordar. Mesmo que o sistema de portagens fosse invisível e não perturbador do trânsito (omnisciente) – totalmente diferente do que se passa na Ponte 25 de Abril por exemplo – irá sempre introduzir um aumento da poluição, dos gastos públicos (construção das portagens) e agravará o congestionamento já existente que é, ele próprio causador de poluição excessiva que não existiria sem ele.

Além disso vejamos a lógica económica da coisa. Peguemos no IC 19. Pomos uma portagem para entrar na cidade que punirá todos por igual quando a gravidade do comportamento poderá ser absolutamente distinta em termos daquilo que se quer combater: a utilização economicamente menos útil do transporte privado.

Por exemplo, um vendedor/distribuidor depende de um automóvel (de que poderá ser o único ocupante) como um consultor depende de um computador portátil. O primeiro, que passa o dia a percorrer a cidade (e a poluir) mas não tem absolutamente nenhum alternativa viável. Com parquimetro acaba até por pagar relativamente pouco (só o tempo de estacionamento entre paragens que é curto e, portanto, taxado em menores valores) e caso faça as entregas fora das horas de ponta (antes e depois) pode muito bem nem pagar nada de parquímetro. Deverá pagar o mesmo que o consultor que leva o carro para a cidade por puro comodismo?

Se para garantir a saúde pública só um deles poder circular como é que discriminamos melhor as duas situações, com a portagem ou com o parquímetro / reboque / multa de quem tem o carro parado (que não precisa dele para trabalhar) durante todo o dia?

Outro exemplo corrente: deverá pagar tanto (numa portagem pagará) o indivíduo que vai visitar um familiar ao hospital por duas horas e regressa como aquele que leva o carro de manhã para a faculdade, pega no carro à hora de almoço para ir ao restaurante da sua preferência no outro extremo da cidade, regressa às aulas e abandona a cidade só no final do dia?

Não há nada melhor em termos de medida economicamente eficiente e eficaz do que o pagamento do tempo de estacionamento dentro da cidade quando o objectivo é que o utilizador interiorize que o carro tem um custo social que lhe deve ser cobrado enquanto utilizador. A irritação de ter que pôr moedinhas de duas em duas horas e as cada vez mais frequentes operações de bloqueamento e reboque de automóveis em transgressão (cuidado Nuno, eles andam mesmo aí!) são faces visíveis e recomendáveis de sistema implementado.
Alguém acreditaria há 10 anos que a a cidade de Lisboa teria estacionamento pago em toda a sua extensão?

O Nuno advoga que os transportes públicos por muito bons que sejam, e são infelizmente muito insuficientes por cá, mas ainda assim muito melhores do que pensam os não utentes militantes, nunca resolverão todos os problemas e dá exemplos de cidade com melhores transportes colectivos que enfrentam os mesmos problemas de Lisboa.
Apetece-me dizer que a medicina nunca resolverá o problema da morte, mas recuso em absoluto a desvalorização da importância dos transportes colectivos no seu contributo para a resolução, minimização, seja lá o que se lhe quiser chamar, no combate a este problema.
Há um problema gravíssimo de ordenamento de território em Portugal e na região de Lisboa em particular (talvez também haja em Paris e não em Helsínquia onde, que eu saiba não há notícia de engarrafamentos diários comparáveis com os de nenhuma cidade do sul da Europa) mas esse problema grave, real, e difícil de resolver, não nos impede de encontrar soluções originais para o problema.

O que temos de admitir é que se tratarão de soluções que sem margem para dúvida levarão as pessoas que moram no subúrbio a tomar ainda mais consciência das desvantagens e custos inerentes a essa sua condição.
No dia em que deixarem de poder trazer o popó para a cidade (seja qual for a razão) muitos se sentirão defraudados das expectativas que criaram. Por exemplo, casa grande, mais barata, com mais conforto (menor poluição, boa mobilidade) e a “apenas 20 minutos” do emprego. Os 20 minutos aumentam todos os anos e o custo inerente à utilização do transporte privado também, incluindo os danos para a saúde do próprio…

Para terminar pego na sugestão salvadora do Nuno: aumente-se o preço da gasolina e do gasóleo de modo a só uma minoria poder usar carro! Ó Nuno talvez tenhamos de chegar a isso se começar a nevar no Verão – e mesmo assim preferia outra técnica – mas não exageremos.

Em larga medida se as nossas viagens individuais de carrinho se resumissem às escapadinhas libertárias de fim de semana, ou às viagens de férias ou à utilização absolutamente utilitária do bólide estilo velha carroça de carga dos antigos, julgo que todos poderíamos aguardar mais calmamente pelos resultados da ciência na sua busca por fontes energéticas mais limpas e ecologicamente sustentáveis. O problema não são (essencialmente) essas viagens.

O problema são as outras, continuadas, concentradas, excessivas, fruto dos erros localização dos agentes económicos, da desresponsabilização quase total do uso do automóvel individual, do nosso vício ou dependência pelas quatro rodas. Transpor para o preço o custo ambiental genérico faz sentido mas fazeres o preço chegar a um nível tal que funcione como solução particular para a utilização do automóvel no interior das cidades não me parece muito feliz. Até porque que se quisesses manter-te “sem excepçõesâ€? e fiel a essa princípio de penalização via preço do combustível arranjarias um desequilíbrio económicos de tal ordem que faria parecer o “… problema de quase impossível resolução com consciência social…â€? de que falas uma brincadeirinha de crianças.

O “tratado” já vai muito longo, haverá outras oportunidades para mais argumentos.

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