O que é que nos faz tomar comprimidos? Quando digo comprimidos, refiro-me especificamente àqueles comprimidos que brincam com os neurónios, que tentam pô-los a conversar entre si, naquele que julgamos ser o “tomâ€? certo que vai bem com a nossa pele. Comprimidos humorísticos, digamos.
Não fujo deles como o diabo da cruz, mas para lá caminho. Não lhes acho graça, pronto. E pior, sou tentado a combatê-los, a apresentar-me como um naturista ao dispor exemplificando alternativas razoáveis e eficazes.
Mas a que propósito é isto para aqui chamado agora? Por um pequeno nada que li nesta esfera, mas que podia ter ouvido na minha família.
Bem sei que pode ser uma ironia ligeira com intenções paliativas mas o textozinho da Bomba Inteligente onde retrata o choque de um amigo perante a primeira evidência da inexorabilidade de uma primeira perda e, particularmente, o remate do seu texto (a saber: “Mas nada de dramas: um comprimido de Cipralex de manhã e meio Triticum meia hora antes de deitar para os dias serem curtos, meu querido”), voltaram a pôr-me a pensar na nossa voragem por anti-depressivos, ansiolíticos, calmante e afins (já não falo nas drogas ilegais).

O que mais me espanta, choca e move a exteriorizar a opinião é a banalização com que tanta gente trata o dito comprimido. Por vezes sou testemunha de conversas mirabolantes nos mais improváveis locais (no transporte público; quando espero para pagar o jornal; quando estou a pôr gasolina…). Conversas que julgava acessíveis apenas a iniciados em farmácia. Pessoas de todas as raças, credos e condições trocam comprimidos e experiências como eu trocava cromos para completar a minha caderneta do “Era uma vez o espaçoâ€?. Não me alegra esta democracia de “negócios” às claras onde a dimensão da moca (ou mocada) do dito comprimido é a moeda de troca. Fragmentos como os que seguem são a paga do benemérito fornecedor, geralmente um esforçado amigo: “Não me deu a fome o dia todo“; “É melhor do que passar três horas a pedalar no ginásio, dormi que nem um anjinho“; “Depois de tomar fiquei com uma energia fenomenal!”; “É que parece que nem me lembrei do acidente o dia todo, tudo me parecia mais distante…” ou ainda “Já nem me lembro do nome dele! Vamos ao Blues ou ao Lux?â€?

O que é que tu tens a ver com a vida das pessoas ó Rui Manuel? Nada… Mas que diabo… eu vivo com elas, estou rodeado por elas, posso ao menos tentar inquietá-las com a minha inquietação. Assusta-me, numa perspectiva mais filosófica, e entristece-me, numa perspectiva mais concreta, a falta de consciencialização de tanta gente que adere ao “clube dos comprimidos humorísticos”. O atira-para-trás-das-constas-tudo-o-que-é-doloroso-o-quanto-antes não seria inteiramente desprezível se não escondesse tantas vezes a necessidade de uma acção, de uma prova de humanidade, de uma demonstração de garra e de determinação. Há sempre os malditos efeitos secundários. Mais quen ão seja o de nos impedir de crescer.
Vamo-nos deixando morrer anestesiados, estupidificados, perdendo a maravilha do conhecimento vivendo permanentemente no limiar da “percepção alternativaâ€?. Enfim – uso demasiadas vezes esta palavra -, resisto qual selvagem inadaptado a este abominável mundo novo feito de fugas e mais fugas. Pequenas atitudes de pequenos indivíduos que são cada vez mais o problema, um problema cada vez maior do que todos aqueles de que fugiram inicialmente.

Para desanuviar: cá para mim é bastante provável que seja gente apanhada dos carretos pelo uso abusivo de inúmeras “drogas humorísticasâ€? que depois tem brilhantes ideias como estas de que nos falou Maria do Carmo Vieira no de hoje (artigo em anexo).

Uma nota final para o Terras do Nunca me dar uma ajuda; vai em inglês e tudo que é para dar mais estilo: I don’t dig drugs. Am I right or am I left?

Paz e amor meus irmãos!

Bilbiografia recomendada: CORREIA, Clara Pinto (2002), “A Arma dos Juízes”, Relógio D’Ã?gua.

Errar É Próprio dos Homens. Persistir no Erro É Próprio dos Loucos”
Por MARIA DO CARMO VIEIRA
Segunda-feira, 05 de Janeiro de 2004

O que é o vento? “É uma massa de ar em movimento”.

Esta definição, dada por um professor do 1ª Ciclo, foi considerada pelos intervenientes, na abertura da sessão do 2º Encontro de Investigação e Formação – Criatividade, Afectividade, Modernidade – Escola Superior de Educação, realizado em Novembro de 2001, uma profunda “agressão traumática” para as crianças. Quanto não seria mais eficaz, diziam, referir o moinho que roda com a ajuda do vento, as árvores e as flores que baloiçam e muitos outros exemplos que se iam dando através da leitura de um poema, considerada a estratégia mais correcta, mais delicada e a menos traumatizante para explicar aos alunos, ainda crianças, o “que era o vento”.

Ouvi a leitura do dito poema, e a conclusão do “pedagogicamente correcto”, paralisada de estupefacção e lembrei-me do testemunho de uma colega do 1º Ciclo, Manuela Castro Alves, no II Encontro Internacional “O Desafio de Ler e Escrever”, realizado em Julho de 2001, demonstrando, com exemplos vários, quanto se subestimava a inteligência e as capacidades das crianças, na aprendizagem da leitura e na criação do estímulo para a mesma. Assim, “com a preocupação quase exclusiva de levar as crianças à memorização de determinados fonemas, os manuais de iniciação à leitura apresentam frases”, cujo conteúdo é verdadeiramente anedótico. Eis alguns exemplos: “um perú atira a pêra à parede” (para dar o valor do r entre vogais), “Um pai pula no tapete” (para introduzir o trissílabo), “uma mula deita a lata de tomate à lama” (porque até à altura se tinham trabalhado as vogais e as consoantes t, m, l e d e era preciso articulá-las, mesmo à custa do insólito), uma noiva leva um ramo formado por “uma dália, uma túlipa e uma violeta” (só porque não tendo sido trabalhada a função do s no final das palavras, ela não podia aparecer com um ramo de rosas ou de outras flores…). Destacava ainda a mesma colega a infantilização a que estes manuais sujeitam as crianças, utilizando em vez “de carros, pópós, titis para tias, pipis para frangos, tautau para pancada, dói-dói para ferida, etc.

Uma outra colega do 1º Ciclo, Carmelinda Pereira, da Escola de Algés, informou-me de que o actual esvaziamento de conteúdos nos programas do Secundário, nomeadamente na disciplina de Português, acontecera já no 1º Ciclo, reduzindo ao mínimo o grau de exigência, bem como os conhecimentos a adquirir pelos alunos, facto que levou muitos professores a fotocopiar os manuais antigos.

No seguimento do que já aconteceu no 1º Ciclo, compreende-se a insistência dos proponentes destes novos programas de Língua Portuguesa nos textos ditos “profissionais” e nos textos dos media. Assim, a televisão, para alegria dos alunos, poderá estar presente na sala de aula, com, e cito o programa, “telejornais, reportagens, entrevistas, publicidade” etc, etc, tendo os alunos igualmente acesso a “documentos em suporte de papel”, de que destaco, “notícias, pequenos anúncios, publicidade, desenhos humorísticos, horóscopos, palavras cruzadas”. Eis, pois, o tão apregoado lúdico nas aulas.

Ao referir expressamente a Escola Básica de Algés quis chamar a atenção para o facto de ter sido uma Escola muito amada pelo grande violinista e maestro, Yehudi Menuhin. Onde quer que esteja, continuará a olhá-la com a mesma ternura com que os meninos lhe chamaram “Sr. Amendoim”, aquando da sua visita a Portugal, em 1998. Bem a propósito virão as suas palavras, agora que se teima em anular e amaldiçoar a arte, nela se incluindo a literatura, privilegiando-se desastradamente no Ensino o texto informativo: “É a arte que pode estruturar a personalidade dos jovens cidadãos no sentido da abertura de espírito, do respeito pelo próximo, do desejo de paz. É a cultura, de facto, que permite a cada pessoa enriquecer-se com o passado para participar na criação do futuro. (…) a arte é uma antena preciosa para captar o futuro que não pode ser reservado só a alguns.”

Convém acrescentar que a escola Básica de Algés está integrada no projecto MUS-E, cuja “principal função é a de melhorar as condições e as possibilidades educativas de crianças desfavorecidas, através da música, das artes e de várias disciplinas”. Na origem está a Fundação Internacional Yehudi Menuhin.

Recuperando a definição de vento, acima mencionada, a qual foi de imediato criticada e substituída por um poema, e relembrando a polémica em torno das notas de exame nas disciplinas de matemática e física do secundário, será interessante recuar até aos finais do século XVI e ouvir as admoestações dos Superiores Gerais de Roma para os Provinciais jesuítas portugueses, focando “o feitio português avesso” às matemáticas e às ciências experimentais. Nesse sentido, e em defesa da eficácia da missionação, advertiam: “Desejamos ardentemente que os nossos religiosos nessa Província Portuguesa cultivem os estudos de Matemática, não somente para exercerem o magistério dessa Faculdade, mas sobretudo para poderem ser enviados à missão da China”.

Demagógico seria aceitar o argumento fácil de que os portugueses são pouco aptos para a matemática e ciências experimentais. Onde ontem existia a repressão, impedindo todo o tipo de contestação e perseguindo os dissidentes, “inclinados a novidades ou de inteligência demasiado livre”, hoje existe o paternalismo das Ciências da Educação, duvidando das capacidades de professores e alunos e privilegiando a forma em detrimento dos conteúdos. Daí a utilização de argumentos do tipo “impedir aulas de seca”, “flexibilização de opções” ou “adequação dos autores às salas de aula”, para justificar alterações que anulam a curiosidade, a reflexão, o esforço e o desafio. Não admira, pois, que a competência e actualização científicas dos professores sejam, neste momento, relegadas para lugar de pouco destaque, relevando-se o que se chama de “formação em metodologia de projecto”, “formação em avaliação” ou “formação em gestão e desenvolvimento curricular”.

O que é grave nas alterações programáticas propostas, e destaco o caso que melhor conheço, ou seja o da disciplina de Português do Secundário, não é apenas a pobreza dos seus conteúdos e a ausência de articulação nos aspectos literários, mas o facto implícito de tomarem como adquirido a falta de conhecimentos que os alunos evidenciam ao terminarem o Ensino Básico. Esta situação não pode, no entanto, justificar as alterações agora propostas, as quais visam, no fundo, perpetuar, até ao final do Secundário, a ignorância dos alunos, com a anuência do Ministério e a indiferença de muitos professores.

Preparam-se, neste momento, os manuais de Língua Portuguesa para os 11º e 12º anos. O Ministério, em nome da qualidade do Ensino, ainda vai a tempo de impedir a repetição dos erros cometidos. A Escola exige-o.

Professora do ensino secundário
in Público, 5 de Janeiro de 2004

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