“Cruz em monte, cruz em fonte
nunca o diabo comigo se encontre.
Nem de noite, nem de dia,
nem às horas do meio-dia.â€?

Pai Nosso Pequenino

Benquerença, Dezembro de 1996

Nunca dei com o meu relógio de acordo com o da torre da igreja beirã: hoje o da torre leva seis minutos de adianto. O desfasamento entre a precisão do micro-segundo do meu relógio de pulso e o mecanismo não electrónico do relógio da paróquia vem lembrar, todas as meias horas, a dimensão temporal que impera no interior do país. Uma dimensão tal que em dois dias consegue a proeza de pôr um citadino experimentado sem saber onde param as segundas, terças e demais feiras da semana. Cá na terra, já 1996 vai bem adiantado, há, ainda e só, dois dias na semana: o domingo e os outros.

«O trânsito estará condiciondado entre as 15 e as 17 horas no sentido Centro Cultural de Belém – Avenidas Novas e também entre…»; o que se ouve é a ironia do relógio da torre sobre a emissora alienígena que se estendeu à raia do país. Bateu o meio-dia. É domingo.
Para trás ficaram aulas, trabalho, a rotina das sextas-feiras e ficaram já quatro sacas e meia de azeitona à espera do lagar. Entretanto: partiram-se dois banços das escadas quase centenárias; discutiu-se Deus e a nova equipa do Sporting entre os ramos mais altos de uma oliveira; trincaram-se sardinhas fritas partilhadas com o cachorro dos vizinhos do torrão ao lado e passou-se uma noite rara de lua, estrelas e lareira reanimadora, rematada por um sono profundo.

Enquanto vos escrevo esta, boa parte da minha família peca. O retiro dedicado à apanha da azeitona é curto, demasiado curto para dar conta de uma mão cheia de galegas, outra de cordovil e ainda outra de vermelhal e mais algumas carrascas. O dilema está em aproveitar o domingo e conseguir acabar o serviço ou não trabalhar ao domingo e partir para a cidade com menos alguns litros de azeite em conta e menos uma falta grave à religião.
Entre a geração temente a Deus, a que diz que teme e se balda e a que não teme e despreza, chegou-se ao compromisso pragmático de trabalhar meio domingo às escondidas das bocas do povo.
Hoje de manhã iniciou-se, então, uma operação «stealth» de cujo resultado teremos novas durante a semana pela boca (ou com sorte, pelo silêncio) das beatas da aldeia.

Estas peripécias lembram-me um outro dia no campo, durante uma descamisa ao luar, há imenso tempo; talvez até já conheçam a estória:
– Filho, estás a ver aquelas manchas negras na lua? Se reparares bem descobres lá a forma de um homem com um volume às costas. Vês? Ali.
– Ah…
– Aquele homem foi castigado por Deus. Era muito ganancioso e, embora se dissesse temente a Deus, pecava todos os domingos, pois, na avidez de ganhar mais uns patacos, enquanto as outras pessoas iam à missa e passavam o dia com a família, ele ia trabalhar para o campo. Castigando a sua ganância Deus condenou-o a carregar uma moreia de silvas para todo o sempre, sem destino, para que redimisse os seus pecados. E para que todos soubessem do seu pecado colocou-o lá em cima, no lugar mais alto e visível, no meio da lua branca. Vês?
– Pai… Eu pensava que aquela mancha era um olho e aquela ali ao lado era outro olho e a outra mais em baixo, meio de lado, era uma boca torcida. Pensava que a lua se ria…

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