“Constituição” Europeia e Revisão Constitucional
Por JORGE MIRANDA
Quarta-feira, 01 de Outubro de 2003 (Público)

Destaques

Não se trata de ser ou não favorável a uma concepção federalista, até porque falta ao projecto o princípio essencial do federalismo – a igualdade entre os Estados

Em vez de a Assembleia da República se preocupar com a perda de peso de Portugal nas instituições europeias, vai preocupar-se com a mudança de nome dos ministros da República ou com os poderes legislativos regionais. Serão os nossos deputados capazes de distinguir o essencial do acessório, o urgente do que pode esperar? Terão sentido de Estado?

Pode haver um referendo europeu, mesmo antes de aprovada, na Conferência Intergovernamental, a “Constituição” europeia ou de ela ser submetida ao Parlamento. E isso é preferível a que o povo seja colocado perante factos consumados

Pode parecer estranho, em face da atenção prestada pela comunicação social a sucessivos casos judiciais e depois das devastações florestais ocorridas nos últimos dois meses. Mas julgo (sem considerar, evidentemente, os problemas estruturais da educação, da produtividade e da evasão fiscal) que o problema de momento mais grave com o nosso País se defronta é o provocado pelo projecto de “Constituição para a Europa” elaborado pela chamada Convenção presidida por Giscard d’Estaing.

Esse projecto, a ser aprovado, diminuirá fortemente o peso de Portugal no seio da União Europeia, colocar-nos-á em posição de manifesta inferioridade perante os “grandes” (Alemanha, França, Reino Unido) e os “menos grandes” (Itália, Espanha) e abrirá um caminho, dificilmente reversível, de perda de capacidade de decisão para defesa de interesses vitais (que não coincidem, como se tem visto, por exemplo, com os da Espanha – vejam-se as pescas ou o afundamento do “Prestige” – ou com os da França – recorde-se a política francesa em Ã?frica). Pouco mais seremos que a Catalunha (mas sem o esplendor económico que esta possui).

Não se trata de ser ou não favorável a uma concepção federalista. Não se trata disso, porque falta ao projecto o princípio essencial do federalismo – a igualdade entre os Estados. Não se trata de federalismo, quando se multiplicam normas e intervenções uniformizadoras que nos Estados Unidos seriam impensáveis – basta ler os 342 artigos (!) da parte III do texto, dedicado às políticas e ao funcionamento da União.

RAZÕES CONTRA O PROJECTO

Muitas razões militam contra o projecto de Giscard d’Estaing:

1ª) A “Convenção” não foi uma assembleia constituinte eleita democraticamente por sufrágio directo e universal e que deliberasse através de votações por maioria; foi um órgão de composição heterogénea, com origens diversas e em que prevaleceram procedimentos de tipo diplomático – tal como procedimentos desse género vão marcar a Conferência Intergovernamental (Intergovernamental, sublinho) prevista para este ano e em relação à qual o peso dos “grandes” já se faz sentir de forma despudorada;

2ª) A afirmação do primado do Direito da União em face do Direito dos Estados membros (art. I10º), se entendida de modo a abarcar também as Constituições nacionais, põe em causa, primeiro, os princípios da soberania constituinte dos Estados membros. E depois, afronta a legitimidade democrática (por as Constituições serem todas expressão de vontade popular, manifestada em assembleia constituinte ou em referendo, e na feitura do Direito da União prevalecerem (apesar da intervenção do Parlamento Europeu) típicos órgãos de poder executivo – o Conselho de Ministros e a Comissão – ao arrepio ainda do princípio da separação de poderes.

3ª) A Carta de Direitos Fundamentais adquire força vinculativa e, pelo catálogo que contém (muito para lá das atribuições da União), visa invadir (e, porventura, substituir) os domínios próprios das Constituições nacionais.

4ª) Não fica clara a relação entre essa Carta e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, amanhã, entre o Tribunal de Justiça e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e os Tribunais Constitucionais dos vários Estados.

5ª) É enorme o leque de atribuições da União, independentemente da distinção feita de diferentes categorias de poderes, e a cláusula da flexibilidade mal se compatibiliza com o princípio da subsidiariedade (art. I17º).

6ª) O sistema institucional é extremamente complexo e pode dar origem a conflitos de competências entre o Conselho Europeu, o seu Presidente, o Conselho de Ministros, a Comissão e o Parlamento Europeu.

7ª) Neste sistema institucional avultam a eliminação, em primeiro lugar, das presidências rotativas do Conselho e da presença na Comissão de Comissários designados por todos os Estados, e, em segundo lugar, a criação dos cargos de Presidente do Conselho e de “ministro” dos Negócios Estrangeiros; e tudo vai conduzir na prática à hegemonia dos Estados “grandes”.

8ª) Igualdade entre os Estados só existe na presidência dos Conselhos de Ministros sectoriais, salvo o dos Negócios Estrangeiros e, a prazo, na rotação dos membros da Comissão.

9ª) Ao definir-se o âmbito de aplicação territorial separam-se a República Portuguesa (nº 1 do art. 4º da 4ª parte) e os Açores e a Madeira (nº 2).

Um aspecto complementar lamentável. No preâmbulo do projecto cita-se uma frase de Tucídides: “A nossa Constituição… chama-se ‘democracia’, porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos”. Esta frase é contrária aos princípios da democracia representativa moderna, em que o poder pertence ao povo no seu conjunto e tanto à maioria como às minorias (em alternância no exercício das funções de governo).

O ESTATUTO DA LÃ?NGUA PORTUGUESA

A “Constituição” consagra uma bandeira, um hino, um lema, uma moeda e um dia da União. Nada diz acerca das línguas oficiais e há elementos contraditórios: por um lado, fazem fé os textos do “tratado que estabelece a Constituição” em todas as línguas dos Estados membros (art. IV10º); mas, por outro lado, o Conselho de Ministros adopta, por unanimidade, um regulamento europeu a fixar o regime linguístico das instituições da União (art. III339º).

Estará aí garantido o estatuto da língua portuguesa? Pode recear-se que não, quando se ouvem vozes a defender – a pretexto do custo das traduções, agora muito mais com a entrada de mais dez Estados – que só duas ou três deveriam ser as línguas da União.

Mas isto é algo que Portugal nunca poderá aceitar, nunca. Por uma questão de princípio. E pela importância da língua portuguesa no mundo: não somos 10 milhões, somos mais de 200 milhões presentes por quatro continentes; o português é a 3ª língua europeia mais falada no mundo e a língua oficial de 8 Estados (e, a par do chinês, de Macau); e os Europeus só terão a ganhar com o seu conhecimento.

UMA REVISÃO CONSTITUCIONAL DESCABIDA

Há pouco mais de um ano escrevi neste jornal um artigo intitulado “Acabar com o frenesim constitucional, discutir a Europa”. Era um apelo, que, infelizmente (e infelizmente como eu já previa) não foi seguido.

Durante este tempo, escassearam os debates sobre a “Constituição” europeia em preparação, eles passaram à margem do Parlamento e interessaram muito pouco a opinião pública, anestesiada pela televisão e pelo futebol. E, mesmo agora, a poucas semanas da Conferência Intergovernamental, persiste uma grande indefinição sobre as atitudes que sobre o projecto vão tomar o Governo e o principal partido da oposição. Vão aceitar como inevitável o projecto, tal como está, ou vão procurar obter correcções e reajustamentos?

Mas pior, bem pior. Em vez de a Assembleia da República concentrar a sua atenção nessa problemática, vai, ao que parece, debruçar-se sobre projectos de revisão constitucional respeitantes às regiões autónomas. Em vez de se preocupar com a perda de peso de Portugal nas instituições europeias, vai preocupar-se com a mudança de nome dos ministros da República ou com os poderes legislativos regionais – poderes que, de resto, com a multiplicação das “leis europeias”, vão tornar-se (tal como os poderes legislativos nacionais) cada vez mais ilusórios.

Serão os nossos deputados capazes de distinguir o essencial do acessório, o urgente do que pode esperar? Terão sentido de Estado?

UMA REVISÃO CONSTITUCIONAL IMPOSSÃ?VEL

Não se imporá, porém, abrir um procedimento de revisão, se o projecto de “Constituição”, com mais ou menos alterações, for aprovado? É prematura uma resposta.

No entanto – e a benefício de uma reflexão mais profunda – inclino-me a responder negativamente:

a) Quanto ao alargamento das atribuições da União, porque a fórmula do art. 7º, nº 6 da nossa Constituição parece suficiente para, dentro do razoável, evitar problemas, ao falar em “convencionar o exercício em comum ou em cooperação de poderes necessários à construção da união europeia”.

b) Quanto à Carta de Direitos Fundamentais, doravante com valor vinculativo, porquanto, mesmo que sejam lidos como valendo não apenas contra a União mas também contra os Estados membros, nunca ela poderá envolver uma diminuição do conteúdo preceptivo das normas constitucionais portuguesas (o princípio é aqui de aplicação das normas mais favoráveis) – o que não significa que graves dificuldades não venham a suscitar-se na prática.

c) Quanto à quebra de presença de Portugal em órgãos da União, porque, se isso afecta, sem dúvida, o sentido da soberania internacional do Estado, não se vê como possa ter projecção em nenhuma norma constitucional específica.

d) Quanto ao primado do Direito da União, visto que seria inimaginável que a nossa Constituição – como a de qualquer outro Estado – consignasse a sua subordinação a normas de Direito ordinário e derivado como são as normas emanadas dos órgãos da União Europeia – órgãos esses criados por um tratado, ele mesmo necessariamente só aprovado se não desconforme com a Constituição.

Uma revisão que, ao invés, levasse a consignar tal primado, nem seria sequer uma verdadeira revisão. Seria uma violação dos princípios estruturantes da Constituição, equivaleria a uma mudança qualitativa radical do próprio Estado português (como do italiano ou do sueco).

UM REFERENDO SOBRE O PROJECTO DE CONSTITUIÇÃO?

O artigo 115º da Constituição não permite referendos nem sobre leis, nem sobre tratados. Reporta-se, sim, a matérias ou a questões que devam constar de leis ou de tratados.

E terão de ser somente matérias já objecto de projectos ou propostas de lei ou de tratados já assinados? Não parece. Interpretado o preceito à luz do princípio democrático, nada impede que sejam, simplesmente, matérias ou questões susceptíveis de tratamento legislativo ou convencional, ainda que não estejam em marcha os respectivos processos. Por isso, bem pode fazer-se, por exemplo, um referendo para perguntar ao povo se concorda com a mudança de hora legal ou se concorda com esta ou aquela cláusula a inserir num tratado internacional.

Quer dizer: pode haver um referendo europeu, mesmo antes de aprovada, na Conferência Intergovernamental, a “Constituição” europeia ou de ela ser submetida ao Parlamento. E isso é preferível a que o povo seja colocado perante factos consumados. Neste aspecto, dou razão a Francisco Louçã naquilo que escreveu há dias neste jornal.

O obstáculo reside na fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade dos referendos. Mas aí tudo estaria ainda no objecto a definir: se estivesse em causa o primado na acepção mais ampla, abrangendo quer Direito constitucional, quer Direito derivado, a inconstitucionalidade seria manifesta e qualquer referendo que se realizasse traduziria uma ruptura; se estivessem em causa outras questões, tudo estaria em saber quais e de que maneira estariam equacionadas.

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