Faço minhas as suas palavras XII (act.)
É muito triste chegarmos ao ponto de ter que dizer isto mas é para o Adufe assinar por baixo. Um excerto:
Num Estado de Direito (tenho cada vez mais sérias dúvidas que Portugal o seja, mas ainda tenho que assumir que o é), as declarações desta noite são gravíssimas, provavelmente mais que as do terramoto.
in Janela para o Rio
E já agora recomendo também esta outras um pouco mais abrangentes e que também testemunham bem o que senti ontem sentado no meu sofá televisivo.
October 29th, 2003 at 11:46 am
Caro,
Não sei se leu a carta de José Miguel Júdice. Esperava esta intervenção na sua lucidez, surpreendeu-me no risco alertado. Passarei a explicar-me e com isto, espero, a clarificar a minha postura de modo que possa ser inteligível. Como perceberá, não trata de um simples comentário, ainda que também não se pretenda um manifesto. Apenas o desabafo da tristeza a que se chegou.
1. O normalmente invocado
Sim, conheço os casos espanhol e belga como conheço o caso Boston. E então? Viramos, mais uma vez (parece que está na ordem do dia, já era essa a mobilização contra o Iraque, com os bons resultados visíveis dentro e fora de fronteiras), cruzados que em prol da moralidade pública atropelamos as leis, como aos mais mínimos preceitos de dignidade pública, prudência ou bom senso judiciário e informativo? É isso? Outra vez?
O fim a perseguir, punir os pedófilos eventuais, mas, antes, julgar homens presumidos inocentes, justifica, na sua própria formulação, todos os meios? Não me parece. Conclui-se de ‘se há caso tem de haver culpados’ que podemos fazer tudo o que nos venha à real bolha, mesmo contra a lei, ou apenas contra o bom senso, para os punir? De quantos crimes ou ofensas à lei e ao bom senso nos sentimos capazes, a fim de uma ‘boa causa’? Pessoalmente, tento que seja de nenhum.
2. De que mal sofremos?
De que mal sofremos nós para que os nossos media se tenham tornado, moralmente, autênticos tablóides sensacionalistas ,pela bitola do britânico Sun? Pior, qual o nosso pecado civilizacional para que os fluxos de opinião obtenham, só por si, uma consensualidade a que, como opiniões, nunca tem o direito? O que faz tais consensos condenatórios? Que continuamos nós a tentar expiar com um bode expiatório atrás do outro, que catástrofe pretendemos nós evitar? Ou trata-se do domínio da psicanálise da decadência das civilizações? Nunca, como hoje, sob o grito empunhado dos valores tanto se fez contra eles. Há um puritanismo no ar, o mesmo que atingiu Clinton, a inveja do pequeno homem que vê a oportunidade de vingança – e aí, não era antiamericanismo, era a ‘Internacional Puritana’ dos invejosos, que davam tudo por, com x ou com y, estar na pele do Sr. Presidente – ou que se quer confortado pelo embalo da multidão dos leitores de jornais e bisbilhoteiras de bairro.
3. Cagando ou não cagando, esta é a questão !?
Quando um ‘cagando’ descontextualizado do que é, uma conversa de homens, adultos e amigos, algo entre eles, homens como eu que, ocupando porventura tais cargos, estaríamos imediatamente ‘fodidos’, mas pondo isso de lado, quando um tal ‘cagando’ aparece nos jornais e em autos como atentado ao livre decorrer do processo, qual é a moralidade que realmente está em causa? A de Ferro Rodrigues ou a de tais senhores? Acho que houve inversão completa dos procedimentos e do que é o mais simples acto necessário ao juízo, o esforço por se por no lugar do outro. Ferro Rodrigues não colou o PS ao caso, como se sugere para gáudio da esperteza saloia, na realidade, fora uma ou outra infelicidade de quem é homem antes de ser um ‘animal político’ (como era, e é, o Mário Soares), ele viu-se empurrado, e de forma violenta, contra o caso. E, pior, empurrado, num modo que não tem nada de cabalístico mas que é recorrente nos fenómenos de massificação, por todos os lados.
A) A imprensa a viver um pico perigosamente sensacionalista e dominada ideologicamente à direita, veja-se que os antigamente melhores jornais diários o Público e o Diário de Notícias (e não é de agora, com o novo director), estão nas mesmas mãos (ou haverá que recordar os cúmulos de banalidade afectada como analítica que são, por exemplo, os editorais e textos de JMF ou H. Matos, no Público?).
B) O Sr. João Guerra e outros sabe-se lá porquê, ainda que uma boa e cuidada leitura da carta aberta de Júdice possa ser esclarecedora.
C) Os políticos, os outros políticos, talvez se devesse dizer, pelo simples facto de serem o que modernamente é ser político, não o homem reconhecidamente de mérito e servindo a coisa pública do ideário romano ou a voz pública, consubstanciada na ‘Àgora’, do cidadão grego, mas aquele que na chicana do todos contra todos e no aparente vazio ideológico que enforma o Grande Centrão, é o sobreviventas sobreviventum (perdoe-se o jogo falsamente latinista), cujo modelo ocorre estar a ser posto em causa, ainda que por reacção negativa (extremismos, sobretudo, e crescentemente os de direita). Além do que, tal sobrevivente dos sobreviventes, está logo à partida, voluntária ou involuntariamente, limitado nos seus poderes soberanos à gestão não de políticas, o que sempre envolve o homem, mas de directivas económicas e economicistas emanadas de um centro exterior ao conceito de soberania e, ab limite, não respeitador ou, falando tecnicamente, para além do poder legislativo das nações.
D) Ao público em geral, a hipótese de assistir a uma novela em tempo real onde é permitido, melhor, onde é requerido, que espumem as suas raivas privadas e exorcizem os seus negros profundos, no que, entretanto, se torna o muito pouco ético estado de teatrealização da praça pública, espectáculo que pode ser usado e que se usa, nos bastidores, como a tal cortina (do ABsurdo(.)) em que ninguém toma banho.
4. Porquê?
Porquê, não será necessário perguntar?, gente de índole e ideologias tão diferentes como Manuel Alegre, Ferro Rodrigues, José Manuel Júdice, ou todos, e saliente-se o todos, os antigos bastonários, inclusive o popular-centrista Pires de Lima, ‘o boca aberta’, falam de estado policiário? Porque é que o próprio Presidente da República se vê na obrigação de intervir e um Sarsfield de Cabral recorda, comparativamente, os anos 20 do advento do ‘estado novo’?Estão todos loucos? Porque termina Júdice a carta como termina, com um ‘E que se desiludam, portanto, os que pensam que me calarei, assim esquecendo os meus deveres. Não o farei. Doa a quem doer, custe o que custar, pague os preços que tiver de pagar’… Não, não acuso vindictas nem cabalas, talvez apenas excesso de zelo no interior de uma doutrina neo-liberal e securitária que, quem sabe, inspirada no novo judicialismo internacional – que fez o ‘herói juiz’, como o século XIX fez o ‘herói engenheiro’ e o XX, o ‘herói economista’, com as catástrofes consequentes — , culpado de, em muitos casos, mais não fazer do que atiçar fogos extrajudiciários e eminentemente políticos (potencialmente perigosos e autenticamente vergonhosos, veja-se o caso TPI, gerido pelos americanos e eles mesmos, imunizando-se da sua acção judicial e punitiva), quer purificar o mundo pelo desrespeito, se necessário for, das suas próprias leis. Este mundo é surreal, e nós gostamos. Com os editorialistas e pivots fazemos eco, queremos justiça dizemos, mas o que nós queremos é entreter o tédio e a revolta do quotidiano com sangue, como na triste manifestação branca, e que pareça que se faz justiça, a fim de sossegar as nossas consciências, mesmo que, na realidade, dela se faça o seu oposto.
5. Do que efectivamente se tratará…
Quanto a mim trata-se de algo bastante mais importante do que uma aposta entre amigos, tipo quem é o melhor comentador político. Até porque, para que os haja, é necessário primeiramente a política, e essa é o que está em risco num processo de modo algum localizado mas global (e não trato de cabalas mas de fenómenos colectivos de adesão irracional como os que, entre outras coisas, criaram os vários fascismos). Em épocas de crise recorre-se a bodes expiatórios… agora, se começar a aperceber e elencar tal quantidade de gado perceberá a dimensão da crise. Não, não estou a exagerar estou a recordar para prevenir. Dito de outro modo, o meu ideal de mundo, aquilo porque estou disposto a lutar não se compadece com um mundo a la Sharon. Os fins nunca justificam os meios, e sobretudo quando se trata da coisa humana e do respeito que é devido a terceiros. Nunca.
6. Respondendo à retórica da impunidade…
Se afinal não houver pedófilos, pergunta-se, retoricamente, cotejando o caso espanhol ou belga. Respondo, haja inocentes violentados como culpados ou culpados inocentados contra toda a evidência, a justiça perdeu, não se fez, não teve lugar. Mas toda a busca da justiça tem de ser feita na justiça, na prudência e, como recomenda um certo Cristo, lembrando o episódio da adultera, ‘… quem alguma vez não se cagou publicamente que atire a primeira pedra’. Como me estou a ‘cagar’ para o ‘cagando’ e para as supostas ‘pressões’ que até o Júdice achincalha, e o que exijo é, nunca o linchamento texano, mas a justiça com dignidade da boa tradição humanista europeia, não serei eu, decerto, quem atirará a primeira ou qualquer outra pedra…
7. Esperteza chica e o real escândalo…
A mim, que nem tenho nada a ver com o PS (nem de perto nem de longe, nem sequer como votante eventual, exceptuando um ou outro senão) embora também não enquadre em qualquer outra área por inteiro, o que me escandaliza é o silêncio do governo, quando até o Bispo de Lisboa já se sentiu na necessidade de intervir e chamar as pessoas à calma e à razão, e ao que parece em vão. Contra crenças não há argumentos, para que serviriam os bons conselhos de sua ‘santidade’? Como os do Papa, quanto ao Iraque?. Como lembra Júdice, quem está a ser julgado não é Ferro Rodrigues, embora seja ele, até ao momento, o grande punido e injustamente. Tudo o resto é o lodo do comenta o comentário que comentou… ou palrar de chicos espertos que se acham com direito a empunhar a moral como política.
8. vale a pena?
Não. Mas nem tudo o que nos resolvemos a escrever se escreve porque valha realmente a pena ou na ilusão de que vá mudar seja o que for. Por vezes é apenas a necessidade de ar puro, de se elevar, ainda que por um momento, porventura inglório, acima do lodaçal em que se teima em viver. Que se me desculpe a extensão…
abraços