Assomado à Janela Indiscreta descobri este texto que vou guardar no link ali em baixo…

Chorei do princípio ao fim
Mãe e Filho de Alexander Sokurov

Mãe e Filho de Alexander Sokurov

Um amigo me convidou para assistir a uma projeção de um filme russo no Soho. Perguntei como era o filme e ele respondeu: “Bem, na verdade não acontece nada, e em algum momento alguém morre. Vem pra cá. Você vai gostar muito”. O meu amigo estava distribuindo o filme nos EUA, então senti-me obrigado. Assistir a um filme russo é do tipo de coisas que se fazem pelos amigos.

Cheguei tarde e sentei na primeira fila no fim dos créditos. Dez minutos depois, comecei a chorar calmamente e continuei chorando durante os 73 minutos que dura o filme. Já chorei em filmes antes, mas não consigo me lembrar de chorar tanto, sem pausas, durante todo o tempo. Quando o filme terminou e as luzes se acenderam, uma mulher com os olhos raiados de vermelho, sentada atrás de mim, acenou um kleenex na minha direção e me perguntou se iria escrever alguma coisa sobre o filme para um dos jornais.

O filme chama-se Mãe e Filho e é realizado por Alexander Sokurov. Mãe e Filho explora o último dia na vida de uma mãe moribunda (Gudrun Geyer) e do seu filho adulto (Alexei Ananishnov). É de manhã. A mãe quer que o filho a leve para dar um “passeio”, o que significa que ele a carregue no colo por entre uma série de paisagens de sonho, depois do que volta à casa simples e isolada onde habitam, dá comida a ela e deita-a na cama. Então o filho afasta-se da casa para dar um passeio sozinho e volta para descobrir que ela morreu. Tudo isto em 73 minutos.

Mas o que testemunhamos durante esse tempo é uma coisa de uma tal beleza, de uma tal tristeza, que chorar, para mim, foi a única resposta adequada. Mãe e Filho é um filme sobre a Morte, sobre o Amor e sobre a Graça. O amor entre a mãe e seu filho transcende a forma comum do amor naquilo que é purificado pela iminêncfia da morte. A morte espera os dois com absoluta certeza.: a mãe que irá morrer, o filho que será deixado só. O tempo parece ter abrandado respeitosamente para um compasso no qual o cuidadoso movimento do amor tem espaço para o seu balanço: nenhuma ação é apressada, já que simplesmente isso precipitaria a morte. As personagens alcançaram um estado de graça emocional e espiritual. Parecem desgarradas das suas histórias, estranhas ao ambiente e imunes ao mundo que está para além do seu próprio mundo. Tudo que existe são gestos de conforto, de cuidado, de ternura. O filho escova o cabelo da mãe, aconchega o cobertor em volta dela, dá-lhe de comer por um frasco com tetina. A mãe responde com afagos e carícias: tudo o que a sua debilitada força permite. Em certo sentido, é uma relação que não deve ser presenciada. É sagrada, religiosa, sem a complicação das intrusões inerentes aos pruridos da análise do século XX. É uma visão da humanidade que se torna verdadeiramente transcendente; no entanto, Sokurov não se furta à natureza trágica da morte. A morte paira pesadamente sobre tudo, entristecendo cada gesto, prostrando cada ação. Até a paisagem parece estar plangente perante o falecimento eminente da mãe. Aqui vemos a Paixão, mostrada em quadros que ocasionalmente refletem a história de Cristo: a Paixão, não da mãe enferma, mas do filho, não de quem morre mas daquele que é deixado para trás.

Também o diálogo parece estranhamente ineficaz, como se o amor e a compreensão dos protagonistas tornasse a linguagem desnecessária. Quando conversam, parece faltar um verdadeiro sentido às palavras que proferem. Elas nem confortam, nem clarificam, pois tudo está dito na sabedoria contida em cada gesto. Nas palavras há psicologia, complicação e dor. O que é sobretudo evidente na conversa final, quando os dois discutem razões para morrer e razões para viver. O diálogo é fútil e cruel e só serve para reacender as mágoas.

Diz a mãe: “É tão triste. Ainda por cima você tem que passar por tudo aquilo que eu sofri. É tão injusto”.

“Dorme um pouquinho, mãe”, diz o filho. “Eu volto já”.

O filho sai de casa e anda pela extraordinária paisagem que o cerca. É nestas seqü6encias longas, demoradas, quase imóveis, que o filme atinge o cúmulo da mais emplogante beleza. As paisagens de Sokurov não carregam nenhum desejo de realismo. Os seus planos estão transformados em telas cinematográficas, bastante mais próximos do ato de pintar do que de filmar, inundados de luz artificial opalescente. Estas vistas quiméricas evocam o trabalho dos pintores românticos alemães do início do século XIX, o de Caspar David Friedrich, onde tudo é suavizado por um brilho lácteo. A vastidão e o mistério desta natureza elevada cria uma espiritualidade independente de qualquer fórmula do Cristianismo tradicional. E o cuidado que Sokurov aplica nestes planos habilidosamente trabalhados encontra o seu eco no cuidado com o qual as suas personagens tratam uma da outra — a devoção ao detalhe, a ternura sem pressa, o amor.

Toda esta beleza tem uma medida própria, uma escala temporal ditada pela intromissão da morte. Cada fragmento de ação, cada gesto — lento, plangente, importante, sagrado — permite ao espectador o tempo para sucumbir ao seu fascínio e para ser seduzido pelos seus impulsos poderosos e muito sérios. Vendo este filme, somos forçados a confrontar-nos com a inevitabilidade da nossa própria mortalidade e da mortalidade dos outros.

As emoções são despertas em nós segundo uma forma há muito tempo ausente no cinema.

A minha primeira resposta a este filme foi derramar lágrimas pela tristeza das coisas. E a sua vibração única não tem deixado de ecoar em mim desde então.
Nick Cave
(tradução Maria João Medeiros; adaptação ao português do Brasil Ruy Gardnier. Publicado originalmente em Independent, março 1998)

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