Adufe 5.0

As armas do meu adufe não têm signo nem fronteira
  • Home
  • About
  • Sobre
  • Contactos
  • Translator
Random Image

As armas do meu Adufe,
não têm signo nem fronteira.

Bem-vindo ao Adufe 5.0


No Jardim do Campo Pequeno

18.09.2003 por Rui Cerdeira Branco Categoria As Crónicas e os Contos

Outono / Inverno 94

Que tarde mais chocha, esta!
Nem chuva, nem sol; não está calor, nem frio; só cinzentos ou acastanhados.
Apenas um ventinho maroto vai desguedelhando e empurrando às rajadas os que passam pelo jardim.
Visto aqui dum banco bem no meio, o jardim parece uma ténue ilhazinha que termina a poucos metros, na primeira barragem de automóveis estacionados que o cercam. De facto, é difícil imaginar um jardim, mesmo daqui. Ainda assim, num intervalo entre dois aviões, as copas dos jacarandás e das restantes árvores lá nos vão dando a ilusão desejada de infinitude que hoje se resume ao espesso cinzento, facilmente depressivo.

Mato o tempo com bocejos sucessivos; olho para todos os lados menos para o livro que me ocupa as mãos. Ainda tenho mais quarenta minutos de espera pela frente. Tomo consciência do livro e agarro-me a ele com ganas de o devorar procurando uma fuga absorvente: ora onde é que eu deixei o Gineto…

– Dá-me licença? – Com uma sonora e inesperada interpelação sou retirado bruscamente do torpor a que me começava a entregar. Trata-se dum indivíduo de estatura média, magro, cabelo fraco, de rosto bem vincado por alguns pontos de tensão frequentes; para aí na casa dos quarenta. Ora essa! respondo, enquanto ajeito os cadernos com que ocupava a metade esquerda do banco. O indivíduo senta-se, cruza as pernas, acende um cigarro e assim fica algum tempo, olhando a avenida do outro lado, tendo sempre o cuidado de desviar o escape para bem longe de mim. Olho-o de soslaio e parece-me muito triste. Não vislumbrando sequência para a impetuosidade da interpelação, regresso ao meu livro, mas…
– Olhe para aquilo! Um gato pingado com uma ventoinha de arame a cortar a relva! E mais! Olhe para o que alí vem, duas marafonas, duas baleias! Como é que põem gente desta a tratar dos nossos jardins! E olhe que não é por serem de cor, pois os meus melhores amigos são pretos, mas trazerem imigrantes que nem o português sabem falar e que levam quase três horas a limpar este dedal! Sinceramente! Ah! Quando eu me lembro do antigamente! Os jardineiros, fique sabendo, eram às centenas. E os jardins… Eram autênticas obras de arte! Desde a Praça do Império ao Campo Grande. Não é preciso ir mais longe, este jardinzinho aqui, era um brinco! Mas desculpe estar assim a aborrece-lo, é que uma pessoa tem que desabafar, senão… ainda faz alguma asneira! Desculpe. É estudante, não é? Queira desculpar o desabafo.

Ainda meio apalermado com a nova tirada, repito-me com mais um “ora essaâ€? acompanhado por um sorriso de cortesia. Insisto na leitura mas a irrequietude que ia ali à minha esquerda não agourava um futuro recatado. Fecho o livro e espero a nova intervenção, disposto a alinhar. Agora que bem penso, sempre quis saber o que dizem dois estranho que se encontram assim num banco de jardim.

– Desculpe lá chateá-lo outra vez …
– Qual chatice! Para ser sincero, estava aqui a desperdiçar páginas do livro… Diga lá.
– O senhor é jovem e certamente já ouviu falar como isto era antes do 25 de Abril, não é verdade? Pois bem, não quero que pense que eu gostava do Salazar e da ditadura, mas há coisas que não há meio de voltarem a ser, pelo menos, tão boas como dantes! Olhe a segurança, por exemplo! Quase toda a gente tem medo de sair à noite. Eu, por exemplo, nunca saio à noite sem a minha Mauzer. Ainda o ano passado, numa noite, por volta das dez, dois putos tentaram assaltar-me aqui mesmo no jardim. Olhe, foi ali naquele banco. Um fica de atalaia por estas bandas e o outro aproxima-se e pede-me um cigarro. Mostro-lhe a pistola e pergunto-lhe se não quer fumar um bocadinho do meu «charuto». Não é que se põe a correr aos berros pela avenida a baixo? O outro apanhou tal cagaço com a cena que se estatelou no chão quando fugia ali para ao pé da praça de touros. Ha! Ha!… Mas já viu se eu não estivesse armado?
– Desculpe lá interrompê-lo, mas se todos usássemos armas era capaz de ser um bocado mais perigoso…
– Bem, bem, mas eu andei na tropa e tenho licença… Gosta de filmes do Charles Bronson? Aquele que faz quase sempre se mau? Conhece? Pois é, já reparou como só acerta nos que é preciso? Nunca falha! Se houvessem dois ou três como ele… Um ali no Parque Eduardo Sétimo, outro na Avenida da Liberdade… Era uma limpeza. Bem sei que é um exagero, mas pelo menos a polícia a cavalo, caramba! Dantes era um respeitinho.
– Nem as moscas voavam sem autorização, segundo creio…
– De facto, era uma ditadura e pronto! E também eram tempos difíceis… Não desvalorizo os problemas de hoje, logo os dos jovens, a incerteza, o desemprego… Mas olhe que eu também passei um mau bocado. Nasci ali em Alfama, conhece? Não tive brinquedos, nem a quarta classe acabei… Bem vê, éramos quatro irmãos, a minha mãe sempre a conheci prenhe e meu pai sempre grosso, uma besta, o desgraçado! Era um bufo, passava a vida em cafés e bares a tentar apanhar… enfim, descontentes com o regime. Trabalhava para o Nove Dedos e outros como ele, fazia todo o tipo de imundices. Que disparate! O senhor não deve estar a perceber nada, não é? O Nove Dedos era um pide, aliás, era o Pide mais conhecido da ci-da-de. O terror em pessoa. Acredita que o tipo engraçou comigo?! Andava sempre a perguntar-me como ia a escola. Até me dava uns trocados sem que eu lhe pedisse! Vá se lá saber porquê. O meu pai é que não me ligava nenhuma. Com ele era matemático: chapa ganha, chapa gasta. Putas e vinho verde, como se costuma dizer. Já viu, quatro crianças, a mãe grávida: uma miséria. Um dia chegou completamente louco a casa e começou a arrear na minha mãe, mesmo assim, naquele estado! Fui aos arames, devia ter onze anos, mas já tinha a escola toda, atirei-me a ele e parti-lhe a cara! É verdade. Depois pirei-me o mais depressa que pude. Só voltei a pôr os pés em casa outra vez no dia seguinte. Apanhei-o fora e fui buscar roupa, desde então nunca mais. Cá me safei, vim viver para casa da minha prima Alzira que era porteira dum prédio aqui na avenida, arranjei trabalho a servir numa tasca em Santa Apolónia e fui-me desenrascando. Um dia a besta do meu pai apareceu por lá… O senhor acredita que ele nem me reconheceu? Pode crer! Imagine como ele ia! Foi a última vez que o vi. Dias depois, soube que lhe deram um tiro ali para a Rua dos Remédios. Deus me perdoe, mas foi um bem que veio ao mundo. Um mês mais tarde, chegou a vez da minha mãe. Morreu do parto do meu quinto irmão. Valeu-nos a prima Alzira, outra vez, que Deus a tenha. À excepção da minha irmã mais velha que se amigou de um marujo e foi viver para a terra dele, levando o nosso irmão mais novo, veio tudo recambiado aqui para a Avenida de República. Mas já o estou a maçar, não é?
– Não ligue. Isto é só sono, é que já estou a pé desde as seis. Continue, por favor.
– Pois também eu, desde que trabalho aqui no BISCA, vai para vinte anos. Comecei como segurança no Banco, fui concorrendo e hoje sou assistente do director. Outros tempos, quanto a isto pode estar certo que já foi chão que deu uvas: sem o décimo segundo ano, pelo menos, não chega a lado nenhum e mesmo assim… Continue a estudar que faz muito bem. Isto é um mundo de cão. Olhe, estive casado dez anos e não tive filhos por causa destas guerras e deste mundo de cão. É preciso ser muito… É a minha opinião: não tenho coragem de pôr um filho neste mundo! Para quê? Gente a mais já nós temos. Veja só aquela marafona, tanto arrastou o sacos das folhas secas que o rasgou! Lindo chiqueiro! Ai Sampaio, Sampaio! Mas onde é que eu ia…
– A sua mãe tinha falecido e…
– Já me lembro. Estivemos com a prima Alzira nove anos até que ela morreu no metro. Foi do coração. Assaltaram-na e ela morreu com o susto. Mas o gatuno também teve a sua conta! Alguém o atirou para a linha e não morreu passado a ferro porque assou antes do tempo
– breve pausa. Hoje vivo com a minha irmã mais nova aqui na João XXI. Sabe, no entretanto ainda passámos mal, foi até eu ter arranjado emprego aqui no BISCA. Estivemos alguns anos a viver numa espelunca no Poço do Negros. Olhe, foi aí que fiz os meus amigos cabo-verdianos. Um amor de gente. Mas pronto, cá estamos. Felizmente hoje não tenho razões de queixa da vida. O que me enerva é o que vejo à nossa volta, esta falsidade, a malandragem… Ah! Vale tudo menos tirar olhos e, mesmo assim, qualquer dia até isso!
– Tirar olhos?!
– Sim senhor! Talvez para transplantar!
– risos. Esses canalhas mereciam era todos um balázio nos cornos. Mesmo que os apanhem, ao fim de dois ou três anos andam aí pelos jardins a fazer-nos companhia. Sabe, eu nunca fui de direita, mas esse tipo, o Monteiro, diz uma boas verdades. Diz, sim senhor. A única coisa que me vai valendo para animar é o Ceportengue. Eu cheguei a jogar futebol lá numa filial do Ceporteungue, em Alfama, e não era mau de todo, mas já pode imaginar, com esta vida… O meu divertimento quando não tinha dinheiro para ir ao estádio era escrever o relato nuns papelinhos. Ouvia o rádio e depois escrevia à minha maneira. O Ti João da mercearia dava-me lápis, eu arranjava o papel, escrevia e depois relatava o jogo para ele e para a malta lá da rua. De inverno, quando não podíamos jogar, eu era o rei. Juntavam-se no átrio da igreja para ouvirem o meu relato. Como se diz…? Enternecedor! Era enternecedor. Acabávamos quase sempre à porrada porque arranjava maneira de o Ceportengue ganhar todas! – risos. Mas era na reinação, até o senhor prior se divertia connosco.
– Pois eu também sou do Ceportengue.
– Grande clube, não haja dúvidas. Como é o Benfica e o Porto e outros, mas o Ceportengue é o Ceportengue, não é verdade? Aquele verde…
– A esperança! Viva o Ceportengue! Bom está na minha hora, senhor…
– João Tuna, João Tuna Oliveira, mas tome lá um cartão. Andei a gastar dinheiro com isto, tenho que os pôr a uso!
– Muito obrigado. Olhe não tenho para a troca… O meu nome é Rui Manuel, Rui Manuel Cerejeira. Foi um prazer.
– Muito obrigado eu ! Mais uma vez, desculpe a maçada.
– Ora essa! Então boa tarde.
– Felicidades!

Afasto-me do Jardim e rumo para a minha aula de condução, naturalmente com o senhor João Tuna em mente. Olho para o cartão e reparo que o verso está quase completamente negro. Assim que o último raio encandeador de sol deste dia se esgotou, pude perceber que tinha nas mãos um relato de um jogo do Ceportengue, escrito numa caligrafia minúscula, quase ilegível. Mas dava para entender que acabava bem: era o Ceportengue que ganhava ao Porto com um golo no último minuto.
Enquanto esperava que abrissem a porta do prédio da escola de condução ainda vislumbrei a figura esguia de João Tuna a atravessar a João XXI, calmamente, de mãos nos bolsos, imensamente triste.

******************
(Prot-blogue escrito há 9 anos – resisti em fazer-lhe afinações, perdoem-me. Esta Lisboa que eu amo…)

Partilhe:

  • Facebook
  • Twitter
  • More
  • Tumblr
  • Pinterest
  • Reddit
  • Pocket
  • Email
  • Print
  • LinkedIn

Comments are closed.

← Conto
May the force be with you →

  • Artigos Recentes

    • Como se forma um gabinete governamental?
    • Entretanto, no PS…
    • 15 de setembro de 2017
    • Recomeço
    • Era uma vez no governo
  • Categories

    As Crónicas e os Contos BD Blogologia Brasil Cinema Ciência e Tecnologia Curiosidades Estatísticas Desporto Ecologia e Natureza Economia Educação Electrico 28 Fotografia e Pintura Gastronomia INE Letras e Livros Letras e Livros Lisboa Media MEP Mimos Palavras dos Outros Partido Socialista Pessoal Poesia e Música Política Portugal Post patrocinado Publicidade Religião Saúde SCP Sociedade Teatro Uncategorized Viagens Video Web
  • Categories

  • Archives

    • April 2019
    • March 2018
    • September 2017
    • June 2017
    • July 2016
    • March 2016
    • January 2016
    • November 2015
    • October 2015
    • September 2015
    • August 2015
    • July 2015
    • June 2015
    • May 2015
    • April 2015
    • March 2015
    • February 2015
    • December 2014
    • November 2014
    • October 2014
    • September 2014
    • August 2014
    • July 2014
    • June 2014
    • May 2014
    • April 2014
    • March 2014
    • February 2014
    • January 2014
    • December 2013
    • November 2013
    • October 2013
    • September 2013
    • August 2013
    • July 2013
    • June 2013
    • May 2013
    • April 2013
    • March 2013
    • February 2013
    • January 2013
    • October 2012
    • September 2012
    • June 2012
    • May 2012
    • April 2012
    • February 2012
    • January 2012
    • December 2011
    • September 2011
    • July 2011
    • June 2011
    • April 2011
    • February 2011
    • January 2011
    • December 2010
    • November 2010
    • October 2010
    • September 2010
    • August 2010
    • July 2010
    • June 2010
    • May 2010
    • April 2010
    • March 2010
    • February 2010
    • January 2010
    • December 2009
    • November 2009
    • October 2009
    • September 2009
    • August 2009
    • July 2009
    • June 2009
    • May 2009
    • April 2009
    • March 2009
    • February 2009
    • January 2009
    • December 2008
    • November 2008
    • October 2008
    • September 2008
    • August 2008
    • July 2008
    • June 2008
    • May 2008
    • April 2008
    • March 2008
    • February 2008
    • January 2008
    • December 2007
    • November 2007
    • October 2007
    • September 2007
    • August 2007
    • July 2007
    • June 2007
    • May 2007
    • April 2007
    • March 2007
    • February 2007
    • January 2007
    • December 2006
    • November 2006
    • October 2006
    • September 2006
    • August 2006
    • July 2006
    • June 2006
    • May 2006
    • April 2006
    • March 2006
    • February 2006
    • January 2006
    • December 2005
    • November 2005
    • October 2005
    • September 2005
    • August 2005
    • July 2005
    • June 2005
    • May 2005
    • April 2005
    • February 2005
    • January 2005
    • December 2004
    • November 2004
    • October 2004
    • September 2004
    • August 2004
    • July 2004
    • June 2004
    • May 2004
    • April 2004
    • March 2004
    • February 2004
    • January 2004
    • December 2003
    • November 2003
    • October 2003
    • September 2003
    • August 2003
    • July 2003
  • SUBSCREVA O RSS

    Artigos 5,517
    Comentários 8,731.

  • RSS Economia e Finanças

    • Tabela Remuneratória Única da Função Pública em 2021
    • Escolas fechadas => Apoio excecional à família – declaração disponível
    • Escolas suspendem atividade por 15 dias, pelo menos
    • INE está a recrutar 11.000 recenseadores para os Censos 2021
    • Formulários para Layoff simplificado de apoio à Retoma Progressiva – 2021
  • RSS Melhores Depositos a Prazo

    • Melhores Depósitos a Prazo na segunda metade de 2019
    • Algum depósito a prazo oferece retorno positivo em finais de 2018?
    • Depósitos a Prazo: última atualização de 2018
    • Taxa de juro média dos novos depósitos é três vezes superior à espanhola mas…
    • Bancos com as melhores taxas de juro de depósitos a prazo em 2018
  • RSS Viagens no Espaço

    • Trivago – comparador de preços de hotelaria nacional e internacional
    • Sol em Sol – cozinhar com a luz do sol no Parque da Cidade
    • Quais são os restaurantes que participam na Lisboa Restaurant Week de Setembro de 2012?
    • Restaurantes participantes na Porto Restaurant Week (até 5 de junho)
    • Feira do Livro do Porto 2012 – 31 de maio a 17 de junho
  • RSS Onde estão os Números

    • Censos 2011 – Dados definitivos do INE Portugal
    • Séries trimestrais para a economia portuguesa: 1977-2011
    • Séries anuais do património dos particulares: 1980-2011
    • Empresas em Portugal: 2004 a 2010
    • SEFSTAT – Estatísticas sobre a imigração em Portugal 2000 a 2011
  • Blogroll

    • 365Forte
    • Animo
    • Economia e Finanças
    • Jugular
    • Maquina Especulativa
    • Melhores Centros Comerciais
    • Melhores Depósitos a Prazo
    • Ofertas de Emprego
    • Onde estão os números
    • Plural Mag
    • Provavelmente Poesia
    • Real República
    • Viagens no Espaço
    • World Sports Intelligence


Adufe 5.0 © 2007 All Rights Reserved. I am proudly using WordPress Engine for my Blogging Engine.
Entries and Comments.

Saur 1.1 made by Nurudin Jauhari


loading Cancel
Post was not sent - check your email addresses!
Email check failed, please try again
Sorry, your blog cannot share posts by email.