Esta entrada no Weblog serve para eu guardar para a posteridade – para a minha história, se viver anos suficientes para lhe poder chamar isso – uma pequena imagem do Portugal de hoje. Faço-o despejando para anexo dois artigos de jornal e um de opinião. Todos do Público de hoje.

E faço-o porque:

O artigo de Miguel Sousa Tavares passa a mão por um quisto visível que ameaça abrir ferida com potencial risco de vir a gangrenar pelas atitudes do nosso poder executivo: a questão de assegurar a restrição à concentração excessiva nos “media”.
Lapidar quando define os requisitos mínimos de um estado de direito democrático e quando qualifica a recusa em discutir e fazer aprovar uma lei anti-trust por parte dos partidos que suportam o actual governo como sendo uma actitude “típica de uma certa direita sem “curriculum” democrático, que confunde governação democrática com eleições periódicas, confunde justiça social com caridade e confunde liberdade com liberalismo”. Uma direita que também temos algures aqui nesta blogo-esfera.
Coerente quando acusa com a violência dos princípios antes defendidos e agora tão claramente violados pela sua colega Maria Elisa na novela que protagoniza. Salva-se Vicente Jorge Silva, mas algo me diz que, catalogado como anti-corpo, não quererá (e não poderá?) continuar a dar alguns bom exemplos no parlamento durante mais legislaturas. Só pela atitude que tomou já valeu a pena Vicente Jorge Silva ser deputado.

Mas faço-o também porque:
Fiquei espantado com o que se passou num Tribunal de 1ª e 2ª Instância deste país. Não só neste recente caso da Casa Pia como, aparentemente, em muitos outros desde 1987. A Constituição nos direitos mais elementares dos cidadãos e nos preceitos mais básicos para se fazer justiça tem sido sistematicamente violada em prejuízo de todos.
Quanto a este caso concreto, o TC (Tribunal Constitucional) sentiu necessidade de pedagogicamente reexplicar como o juiz de instrução deve agir: “proceder a uma ponderação concreta, face à autoria e conteúdo dos depoimentos, entre, por um lado, os interesses da defesa e, por outro lado, os interesses da investigação criminal e da protecção de testemunhas especialmente vulneráveis”. O TC diz que não basta o juiz falar em “fortes indícios”, prática de “crimes”, é indispensável “A comunicação dos factos ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe possa ser dada ‘oportunidade de defesa'”. Foram identificadas inconstitucionalidades nos interrogatórios exclusivamente sobre questões abstractas, na negação do acesso em tempo útil a um mínimo de provas que sustentam a medida de coação aplicada (provas necessárias a que se pudesse elaborar um pedido de recurso fundamentado), bem como, na rejeição do próprio recurso para instância superior em jeito de pescadinha de rabo na boca. Di-lo o Tribunal Constitucional, por unanimidade (coisa rara). Quantos portugueses se viram privados do cumprimento das mais elementares regras que o próprio bom senso dita?
Neste caso, houve recurso para o TC e este não está fora do sistema judicial. Ainda há esperança que se respeitem os procedimentos para que se faça justiça.

Tribunal Constitucional Aponta Inconstitucionalidades no Processo Casa Pia
Por ANTÓNIO ARNALDO MESQUITA
Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

Hugo Marçal deverá ser novamente interrogado pelo juiz Rui Teixeira que terá de, em lugar de lhe fazer perguntas abstractas, concretizar as circunstâncias de tempo, modo e lugar dos factos que ditaram a sua detenção. O juiz Rui Teixeira também é instado a ponderar a consulta dos elementos de prova que sustentaram a prisão preventiva do advogado de Elvas, de modo a que este a possa impugnar. O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) vai ter de apreciar o recurso da prisão preventiva de Paulo Pedroso decretada em 22 de Maio pelo juiz Rui Teixeira e deve julgar imediatamente um outro recurso do embaixador Jorge Ritto. Carlos Cruz ficou a saber que o habeas corpus só deve ser suscitado quando haja necessidade de obviar a situações de ilegalidade evidente, quando ocorra erro grave ou grosseiro.

À excepção do caso do “habeas corpus” de Carlos Cruz, o Tribunal Constitucional adoptou ontem por unanimidade várias decisões favoráveis ao arguidos e que traduzem um revés para os desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa e para o próprio juiz Rui Teixeira. Os conselheiros do Palácio Ratton, de diversas proveniências ideológicas e jurídicas, estiveram de acordo com a maioria dos recursos subscritos por aqueles arguidos do processo Caso Pia, que invocaram violação de normas constitucionais em momentos nucleares do inquérito (primeiro interrogatório de arguido, exercício do direito de recurso, acesso aos autos para concretizar o direito de defesa). Nessas matérias, o TC considerou inconstitucionais as práticas de desembargadores e do JIC, sendo aguardada com expectativa o que irá afirmar, quando apreciar a conformidade com a Constituição da recolha de meios de prova e restrições à intimidade dos arguidos e sua relação com o advogado de defesa.

O Tribunal Constitucional começou por analisar a interpretação feita por Rui Teixeira e corroborada pelo Tribunal da Relação de Lisboa das condições em que deve processar-se o primeiro interrogatório de arguido. O JIC e os desembargadores entenderam que basta formular ao arguido perguntas genéricas e abstractas sem concretizar o quando, o como e onde os comportamentos supostamente ilícitos foram consumados.

O TC considerou esta interpretação inconstitucional por violação do artigo 28º da Constituição, segundo o qual o juiz deve conhecer das causas que determinaram a prisão preventiva e comunicá-las ao arguido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidades de defesa. O acórdão que deferiu a argumentação de Hugo Marçal sublinha: “A comunicação dos factos [pelo JIC] deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico\u2011criminal, por forma a que lhe seja dada ‘oportunidade de defesa’. Sustenta ainda que o “entendimento acolhido pelas instâncias [primeira e segunda] não respeitou esse critério, o que não permitiu assegurar essa “oportunidade de defesa” em relação às causas que determinaram a sua detenção”.

Acesso aos autos

e salvaguarda do segredo

Os despachos subscritos pelo juiz Rui Teixeira e até agora sufragados pelos desembargadores têm-se limitado a remeter para folhas do inquérito a existência de “fortes indícios da prática de crimes”. Este procedimento foi considerado inconstitucional e os conselheiros reiteraram uma decisão adoptada pelo TC noutro caso e que teve como relator Armindo Ribeiro Mendes. E sustentam que, em relação “ao acesso aos elementos de prova que se mostraram determinantes para as imputações e para a determinação da detenção e da prisão preventiva do arguido”, “tratando\u2011se de processo relativo a crimes de abuso sexual de crianças” não pode nem deve “ser sempre e em quaisquer circunstâncias negado”.

Pelo contrário, o juiz de instrução deve, previamente, “proceder a uma ponderação concreta, face à autoria e conteúdo dos depoimentos, entre, por um lado, os interesses da defesa e, por outro lado, os interesses da investigação criminal e da protecção de testemunhas especialmente vulneráveis”. Na esteira desta conclusão, os conselheiros determinaram a reforma do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa “em consonância com a presente decisão”.

Direito ao recurso

e garantias de defesa

Paulo Pedroso viu rejeitada uma tese de inconstitucionalidade de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, “segundo a qual um deputado pode ser sujeito a prisão preventiva, mediante autorização da Assembleia da República, sem ter havido flagrante delito e antes de ter sido acusado definitivamente da prática de um crime”. Os conselheiros reiteraram jurisprudência já estabelecida pelo TC, quanto aos limites dos direitos dos deputados.

Acabariam, no entanto, por acolher a tese de Paulo Pedroso, contestando o acórdão de Trigo de Mesquita que se recusou a pronunciar sobre o recurso da prisão preventiva, sob argumento de que o juíz tinha revisto a medida de coacção dias antes. O TC determinou “inconstitucional a interpretação normativa” consagrada pelo acórdão do desembargador Trigo Mesquita.

Este desembargador não apreciou, na segunda quinzena de Julho, a impugnação da prisão preventiva a que o deputado foi sujeito em 22 de Maio. Alegou Mesquita que não haveria utilidade no conhecimento do recurso interposto do despacho do juiz de instrução que aplicou a prisão preventiva, por este, em vésperas do início das férias judiciais, ter antecipado a reapreciação da prisão preventiva e prorrogou-a na pendência desse mesmo recurso e antes de decorrido o prazo máximo de 3 meses, previsto para o efeito no CPP.

“O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, esta foi a norma da Constituição que os conselheiros do TC entenderam que foi violada pela interpretação feita pelos desembargadores do Tribunal da Relação. “Em casos idênticos, apenas se concluiu pela inutilidade superveniente do recurso quando o arguido não impugnou e deixou transitar em julgado o novo despacho de manutenção da prisão preventiva”, sublinham os conselheiros.

Foi determinado ainda “a reforma do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa o qual deve, em consonância com a presente decisão, apreciar o recurso que o arguido interpôs do despacho inicial do juiz de instrução que lhe aplicou a prisão preventiva”.

Recurso de Ritto

deve subir já

O embaixador Jorge Ritto viu indeferida uma reclamação apresentada ao presidente do TRL, desembargador Silva Pereira, contestando uma decisão de Rui Teixeira. Em causa o momento de apreciação da impugnação da recusa de Teixeira para fornecer cópias de elementos dos autos destinados a serem invocados pela defesa. Tratavam-se de peças processuais que a defesa de Ritto queria conhecer para recorrer da prisão preventiva.

Relatado pelo conselheiro Paulo Mota Pinto, o acórdão do TC entendeu que, “ao diferir a apreciação do recurso para momento posterior à decisão final da causa”, Rui Teixeira lesou “o direito ao recurso em matéria criminal, por impedir a sua apreciação num momento em que esta ainda possa ter sentido e em que possa ser útil ao recorrente, cuja situação de prisão preventiva não seria ‘apagada’ com o eventual provimento do recurso e consequente anulação do processado”.

O Que Disse o Tribunal Constitucional
Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

1. O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, apreciou o recurso interposto pelo arguido Hugo Manuel Santos Marçal do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 9 de Julho de 2003, que negou provimento ao recurso da decisão do juiz de instrução criminal que determinara a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

O recorrente pretendia que o Tribunal Constitucional apreciasse a constitucionalidade da interpretação dos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, seguida pelo tribunal recorrido, no sentido de que:

– no interrogatório judicial de arguido detido, é suficiente “a formulação de perguntas genéricas e abstractas, não concretizadoras das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar” dos comportamentos em que se funda a imputação dos crimes de cuja autoria o arguido é suspeito;

– com a notificação da decisão judicial que impôs a prisão preventiva não tem de ser facultado ao arguido o acesso aos elementos probatórios que fundamentaram essa decisão.

O Tribunal Constitucional decidiu não conhecer desta última questão por não ter sido adequadamente suscitada pelo recorrente.

Quanto à primeira questão, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa.

O Tribunal adoptou como critério o de que a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico\u2011criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa” (artigo 28.º, n.º 1, da Constituição), constatando que, no caso, o entendimento acolhido pelas instâncias não respeitou esse critério, o que não permitiu assegurar essa “oportunidade de defesa” em relação às causas que determinaram a sua detenção.

Quanto ao acesso aos elementos de prova que se mostraram determinantes para as imputações e para a determinação da detenção e da prisão preventiva do arguido, referenciados por mera indicação dos números das páginas do processo onde esses depoimentos estavam registados, o Tribunal Constitucional entendeu, na linha já traçada no seu Acórdão n.º 121/97, que viola a Constituição o critério adoptado pelo acórdão recorrido de que, tratando\u2011se de processo relativo a crimes de abuso sexual de crianças, esse acesso deve ser sempre e em quaisquer circunstâncias negado, sem proceder a uma ponderação concreta, face à autoria e conteúdo dos depoimentos, entre, por um lado, os interesses da defesa e, por outro lado, os interesses da investigação criminal e da protecção de testemunhas especialmente vulneráveis.

Dado o julgamento de inconstitucionalidade referido, o Tribunal Constitucional determinou a reforma do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual deve ser reformulado em consonância com a presente decisão.

2. O Tribunal Constitucional, também pela sua 2ª Secção, apreciou igualmente o recurso interposto pelo arguido PAULO PEDROSO de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5 de Junho de 2003.

Nesse recurso, o arguido invocava a inconstitucionalidade do artigo 11º, nºs 1 e 3, do Estatuto dos Deputados e dos artigos 287º, alínea e), do Código de Processo Civil e 213º, nº 1, do Código de Processo Penal. O Ministério Público pronunciou\u2011se no sentido da inconstitucionalidade apenas destas últimas normas.

O Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional o artigo 11º, nºs 1 e 3, do Estatuto dos Deputados, por ter considerado que é compatível com o artigo 157º, nºs 3 e 4, da Constituição, a interpretação segundo a qual um Deputado pode ser sujeito a prisão preventiva, mediante autorização da Assembleia da República, sem ter havido flagrante delito e antes de ter sido acusado definitivamente da prática de um crime.

O Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação normativa do Tribunal recorrido que tinha considerado que não haveria utilidade no conhecimento do recurso interposto do despacho do juiz de instrução que aplicou a prisão preventiva, quando já foi proferido na pendência desse mesmo recurso e antes de decorrido o prazo máximo de 3 meses, previsto para o efeito, um novo despacho de manutenção daquela medida – despacho esse que também foi impugnado pelo recorrente. O Acórdão do Tribunal Constitucional entendeu que esta interpretação viola o nº 1 do artigo 32º da Constituição, que consagra o recurso como garantia de defesa. Esta decisão do Tribunal Constitucional insere\u2011se na sua anterior jurisprudência que, em casos idênticos, apenas concluiu pela inutilidade superveniente do recurso quando o arguido não impugnou e deixou transitar em julgado o novo despacho de manutenção da prisão preventiva.

Dado o julgamento de inconstitucionalidade referido, o Tribunal Constitucional determinou a reforma do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa o qual deve, em consonância com a presente decisão, apreciar o recurso que o arguido interpôs do despacho inicial do juiz de instrução que lhe aplicou a prisão preventiva.

3. O Tribunal Constitucional, ainda pela sua 2ª Secção, apreciou o recurso interposto pelo arguido JORGE RITTO, do despacho do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Julho de 2003, que decidiu indeferir a reclamação deduzida contra a decisão da 1ª instância, segundo a qual apenas seria apreciado após a decisão final o recurso da decisão que indeferiu o pedido de certidão de elementos contidos nos autos, com vista a reagir contra a decisão que aplicou ao recorrente a medida de coacção de prisão preventiva.

O recorrente defendia a inconstitucionalidade da norma em que se fundou esse despacho, isto é, do artigo 407º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na interpretação aplicada. Também o Ministério Público, nas alegações formuladas no Tribunal Constitucional, se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade desta norma.

O Tribunal Constitucional entendeu que a referida norma, ao diferir a apreciação do recurso para momento posterior à decisão final da causa, lesa o direito ao recurso em matéria criminal, por impedir a sua apreciação num momento em que esta ainda possa ter sentido e em que possa ser útil ao recorrente, cuja situação de prisão preventiva não seria “apagada” com o eventual provimento do recurso e consequente anulação do processado. Por outro lado, entendeu que tal norma não se justifica sequer pelo valor da celeridade processual, desde logo, por o recurso em questão não prejudicar o andamento do processo principal.

O Tribunal concluiu, assim, pela violação dos artigos 32º, n.º 1 e 20º, n.º 5, da Constituição da República. Em consequência, concedeu provimento ao recurso e determinou a reforma da decisão recorrida de acordo com o juízo de inconstitucionalidade – isto é, de tal forma que o recurso interposto pelo arguido não suba apenas com o interposto da decisão final do processo.

4. Finalmente, o Tribunal Constitucional, pela sua 3ª Secção, apreciou o recurso interposto pelo arguido CARLOS PEREIRA DA CRUZ do acórdão de 16 de Julho de 2003, do Supremo Tribunal de Justiça, que lhe havia indeferido uma petição de habeas corpus.

O Tribunal Constitucional considerou que não violava a Constituição uma interpretação da alínea b) do nº 2 do artigo 222º do Código de Processo Penal que conduza à conclusão de que a providência do habeas corpus se destina a obviar a situações em que a ilegalidade seja evidente ou ocorra erro grave ou grosseiro, devendo nos restantes casos seguir-se a via do recurso ordinário.

Consequentemente, o Tribunal Constitucional não tomou conhecimento do recurso quanto à questão de constitucionalidade referente à norma do nº 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal.

5. Todos os acórdãos foram votados por unanimidade.

Sem Justificação e Sem Pudor
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 26 de Setembro de 2003

Por mais pós-modernas que sejam hoje as democracias, por mais difusos que sejam os direitos individuais, por mais complexa que seja a governação e o processo de tomada de decisões, por maiores que sejam as restrições impostas pela gestão da economia, há coisas que numa democracia devem permanecer eternas e imutáveis, sob pena de se viver apenas numa aparência de democracia. Deve haver eleições livres, o que pressupõe igualdade de condições à partida e real possibilidade de alternância do poder; deve haver uma fiscalização constante dos actos do poder, a qual não se esgota nem é legitimada simplesmente pelas eleições; deve haver uma justiça independente do poder político, mas não irresponsável perante os cidadãos; e deve haver uma imprensa livre, cujos atropelos e abusos têm de ser reprimidos pelo poder judicial. Isto é o “core business”, o mínimo de um regime democrático. Aceitar menos que isto é resignar-se com uma democracia que é formal nos seus aspectos exteriores, mas que ignora a substância das coisas.

Ora, a liberdade de imprensa (é isso que agora me ocupa) pressupõe que quem informa o faça ao abrigo de pressões ou influências políticas, empresariais, corporativas, religiosas ou de outra ordem: não pode servir livremente quem não é livre. Mas não basta apregoar que isso se consegue, desde que cada um possa fundar livremente o seu jornal ou o seu órgão de informação. Na prática e por razões financeiras, isso não está de facto ao alcance de qualquer um. Só empresas bem estruturadas e capitalizadas têm hoje a possibilidade de habitar o mundo dos “media”, o que significa que nenhum jornalista é dono do seu trabalho e todos são assalariados de quem monta o negócio e lhe paga para trabalhar. É inevitável que assim seja, assim como é quase inevitável que uma empresa dos “media” tenha a tentação, e se calhar a necessidade, de se expandir no sector, vertical ou horizontalmente. Como em tudo o resto, também neste negócio vive-se a época da concentração e das empresas que deixam de o ser para se tornarem grupos “multimedia”, actuando em vários sectores da imprensa escrita, na rádio, na televisão, no cabo, na produção de conteúdos.

Nada porém é mais perigoso e mais pernicioso, do ponto de vista do mercado, do que esta concentração. E, mais do que no sector industrial, é na comunicação social que a concentração é potencialmente explosiva. Por isso, nenhuma democracia verdadeira desdenha a sua vigilância e deixa de a combater com leis “anti-trust”, que estabelecem limites a essa concentração – como sucede nos Estados Unidos, em Inglaterra, em França, na Alemanha. E não sucede em Itália, com os resultados que estão à vista: o primeiro-ministro é também o detentor do quase monopólio do mercado editorial, governando como um soba num arremedo de democracia. Entre nós, não chegámos ainda ao ponto em que se possa dizer que a liberdade de informação está em perigo devido à concentração dos “media” (de outro modo, este texto não seria publicável). Mas o que por aí existe já é suficiente para justificar o toque das campainhas de alarme para os democratas, que não para os “facilitistas”. Fora alguns fogachos, como o PÚBLICO, jornais desportivos ou revistas sectoriais, temos quatro grupos de imprensa “multimedia”. O maior deles foi formado recentemente pela fusão da Lusomundo – já de si um gigante da imprensa escrita, dos livros, da rádio e da distribuição cinematográfica – com esse iceberg nebuloso que é a Portugal Telecom, verdadeiro Estado dentro do Estado. A PT, cuja actividade inicial e de referência é a exploração dos telefones fixos (o que faz em condições de monopólio de facto protegido pelo Estado e prestando o pior e o mais caro serviço telefónico da Europa dos Quinze), juntou ao acervo da Lusomundo o seu próprio império, formado pelos telefones fixos e móveis e pela rede televisiva do cabo – a qual concessiona ou não conforme o seu interesse é afastar a concorrência ou aliar-se a ela. Se um mercado formado apenas por quatro grupos, dos quais um tem a capacidade de esmagar tudo à roda, já é uma situação preocupante, imagine-se o que não será se os rumores do mercado confirmarem que a PT-Lusomundo se poderá vir a fundir ou a aliar com o grupo de Francisco Balsemão. Aí, adeus concorrência, adeus liberdade de informação. Quem quiser alinhar com eles safa-se; quem não quiser ou não puder muda de vida. E, quanto ao público, vai conhecer o maravilhoso resultado das “sinergias” – essa palavra tão cara aos grupos económicos e que, no que respeita aos “media”, tem um significado não apenas financeiro, mas também editorial e político.

Ontem, na Assembleia da República, a maioria actual terá derrotado, como se esperava, uma proposta de lei do Bloco de Esquerda que visava impor limites à concentração empresarial no domínio da imprensa. Nada mais do que fez recentemente o Congresso dos Estados Unidos, o Parlamento britânico ou recomendou o Conselho Europeu. Uma lei que deveria ser consensual entre democratas, uma lei que é vital para a saúde da nossa democracia, uma lei que visa pôr um travão, e apenas para a frente, a uma situação que já hoje é de quase total sujeição dos jornalistas em muitas redacções aos interesses empresariais de quem lhes paga e dita a linha editorial, com o único critério da rentabilização económica da informação – como os deputados muito bem sabem.

Para rebater os fundamentos desta lei, os deputados da maioria nem se deram a grande trabalho de argumentação, ilustrando bem até que ponto a anormalidade democrática se vai tornando coisa banal nos espíritos. Hugo Velosa, do PSD, argumentou com a liberdade de concorrência e com o facto de já haver uma autoridade da concorrência, a quem cabia preocupar-se com essas questões – um argumento anedótico ou de puro cinismo. E Nuno Melo, do PP, fugindo-lhe a boca para a verdade, confessou o que lhe vai no íntimo: a concentração dos “media” é condição essencial para a sua sobrevivência. É típico de uma certa direita sem “curriculum” democrático, que confunde governação democrática com eleições periódicas, confunde justiça social com caridade (ou “compaixão”, como diz o Bush) e confunde liberdade com liberalismo.

Mas é bom que não confundamos, então, o que ontem esteve em causa na Assembleia. Não se tratou de um projecto de lei esquerdista ou inviável: tratou-se de uma lei necessária e essencial para defender aquilo que verdadeiramente é estruturante num regime democrático. A esquerda esteve a favor, a direita votou contra. Lembrem-se disso, no futuro.

P.S. – Teria sido uma boa ocasião para que a outrora excelente jornalista Maria Elisa pudesse ter mostrado para que quis ser deputada e para que finalmente algum eleitor reconhecesse alguma utilidade à sua passagem pelo Parlamento. Maria Elisa, até pela sua experiência passada, poderia ter explicado ao seu grupo parlamentar que a liberdade dos jornalistas está em perigo, quando os patrões são tão poucos que incompatibilizar-se com um já faz pensar duas vezes em relação ao segundo. Mas Maria Elisa está de baixa no Parlamento, para poder trabalhar no mais seguro dos patrões: a RTP, o Estado. Depois de não ter conseguido acumular os dois empregos, o de deputada e jornalista no activo (veja-se a independência que isto supunha…), e certamente mais bem paga na RTP do que na Assembleia, resolveu recorrer a esse expediente tão sério que é o da falsa baixa. Não lhe ocorreu renunciar ao mandato, pedir desculpa aos eleitores de Castelo Branco, ao seu grupo parlamentar, aos seus pares da Assembleia. Não, a deputada Maria Elisa preferiu, porque nunca se sabe o que o futuro nos reserva, mentir e fazer batota, saindo “doente” da Assembleia no mesmo dia em que se apresentou ao serviço na RTP. Confrontada com este comportamento eloquente, a Comissão de Ética da Assembleia, com a cumplicidade activa dos próprios socialistas e denotando um notável espírito de corpo, declarou que não se podia duvidar da boa-fé da deputada e preferiu condenar quem se indignou solitariamente – Vicente Jorge Silva. E só face a uma carta da RTP informando que a deputada estava a receber vencimento da empresa desde o dia em que se declarou doente na Assembleia, é que se decidiu a convidá-la a, se não for grande incómodo, “prestar os esclarecimentos que entender convenientes”. Até porque, como explicou o líder parlamentar do PSD, Guilherme Silva, é perfeitamente possível que o tratamento médico possa “impedir o trabalho da deputada no Parlamento, mas não na RTP”, ou seja, é perfeitamente possível que na RTP ainda tenha menos que fazer do que no Parlamento. Estamos esclarecidos em matéria de ética dos deputados.

Entretanto, tudo isto vai-se resolver pelo melhor, com o convite feito à deputada e jornalista para o cargo de adida cultural da embaixada em Londres. Terá assim falhado aquela que, segundo constou nos meios diplomáticos, era a sua grande ambição: o lugar de embaixadora na UNESCO, em Paris. Mas o PSD voltou a provar que não abandona os seus. No caso de Maria Elisa, já é a terceira ou quarta vez que lhe deitam a mão. Só acho verdadeiramente descarado que, depois disto tudo, ela ainda tenha o desplante de recorrer ao argumento sexista terrorista de dizer que está “a ser perseguida por ser mulher”. Porque é que não a nomeiam, em acumulação claro, presidente da Comissão da Condição Feminina?

in Público, 26 de Setembro de 2003

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